“Eu
não bebo
Pelo
sabor do vinho ou para debochar da fé
Mas
para esquecer, nem que seja por um momento
De
mim mesmo”
Lastimo
não me lembrar de onde li isso e de quem é a autoria, mas recebo
com certo impacto e a devida reverência a totalidade do significado
desses versos. Um brinde ao autor!
Já
comentei, até recentemente pelo que me lembro, de que evito beber.
Tenho razões várias e até então, não tenho motivo algum para
arrepender-me de estar me privando dos deleites etílicos, embora se
comparado com outro tipo de embriaguês, recomendo a todos, como um
remédio do qual não faço uso. Não fazia.
Bem,
estava ali no fim de tarde com alguns amigos, gente paciente que por
longos anos tem suportado como cabe a bons amigos, a minha obstinada
abstemia. Fico sempre desconcertado tentando entender para onde vão
tantos litros de bebida, porque até onde sei, a cavidade estomacal
do seres humanos tem lá seus limites embora minhas observações
digam o contrário. Bebiam como se toda a bebida do mundo estivesse
acabando e eu bebericando um copo de refrigerante por horas a fio. O
chato em ser o único de uma turma na mesa de um bar que não bebe, é
que à medida que o álcool sobe pelas têmporas do grupo, você
acaba se tornando, por ser o único a estar sóbrio, ininteligível.
Ninguém mais compreende o que você fala e você fica ali, sozinho
na multidão, privado do conforto da irmandade (porque a tribo dos
“pinguços” é muito irmanada), afastado da afável confraria
etílica.
Sei
lá porque nesse dia resolvi mandar ao diabo toda a minha prudência
em relação ao álcool e resolvi acompanhar o grupo. “Uma
cerveja, faz favor!”.
Detesto
o sabor de cerveja e de outras bebidas, principalmente as “secas”.
O fato de todo mundo falar que “é uma delicia” me leva a
concluir que deve haver algo de muito errado com meu paladar. Penso
intimamente: “ Eu sou um ignorante ou isso aqui é mesmo uma
porcaria?”
E
como o sabor daquela cerveja estava longe de ser o que eu definiria
como “delícia”, tomei de uma vez, como se fosse remédio. Não
precisei de muita para ficar completamente embriagado, porque
bebedores de ocasião são “fracos” e a relação dose/embriaguês
é relativamente desproporcional. Em resumo, fiquei bêbado “como
um gambá” com uma quantidade ridícula de bebida.
Antes
que eu passe às minhas impressões sobre o meu estado de embriaguês,
permitam-me contar que ao que me recorde, fiquei bêbado por duas
vezes, mas foi há tanto tempo e os resultados foram tão negativos
(física e moralmente falando) que tenho destes episódios lembranças
muito vagas, talvez por tê-las bloqueado em função dos maus
resultados.
Levantei-me
para ir ao banheiro (ritual que os bebedores executam diversas vezes
quando em culto etílico) e senti imediatamente o chão sair de
debaixo dos meus pés. Não vou perder-me em descrições
fisiológicas do meu estado, porque considero isso desinteressante em
comparação com minhas outras impressões. Então...Uma pequena dose
de “filosofia de buteco”.
Bêbado...
O
mundo se torna repentinamente mágico e dores que eu nem sabia que
tinha (ou são tão freqüentes que já não as noto) desaparecem.
Fico desorientado e me parece estranho pensar que o que me orienta
seja justamente a união de todas essas dores. Olho para os lados e
acho que todo mundo que está a minha volta é lindo. Como as pessoas
são bonitas quando estão alegres! Não tinha me dado conta. E
de repente, amo todo mundo e se já odiei alguém, me parece absurdo
que o tenha feito e gostaria nesse momento que essa pessoa estivesse
ali comigo para nos reconciliarmos em volta daquela mesa. Um brinde!
Rio
como um desvairado de qualquer tolice, mais pelo prazer de rir do que
pelo significado do que foi dito. Esqueço-me do significado.
Esqueço-me de lembrar qualquer coisa. Esqueço de que existe coisa
como lembrança e falo alto e em bom tom tudo o que me vem à
língua, porque à cabeça, nada me vem, exceto talvez aquela
sensação agradável de que o mundo é um carrossel, um
caleidoscópio maravilhoso. Tudo o que tenho vontade de fazer eu
faço, porque me parece absurdo não atender aos meus desejos. Que é
conseqüência? Estando amparado pela perfeita desculpa de estar
completamente bêbado, atrevo-me a destilar amores. De repente, eu
amo todo mundo, até a quem odeio e especialmente estes.
Bêbado...
A
alma não dói (não mais), a mente não mais fervilha. Desfaço-me
de angustias com uma facilidade absurda, que nem em vinte anos de
análise daria conta. Analiso o mundo pelos meus sentidos. Que há
além do que podem eles perceber? De repente me sinto
despossuído do dom de mentir e me torno um livro aberto (coisa
assustadora e possivelmente acarretará graves conseqüências) , não
pela expectativa da reciprocidade, mas porque me parece natural
fazê-lo. Amo, e descubro para a minha surpresa que também sou amado
e recebo tal amor com a mesma naturalidade com que recebo mais um
copo. “ Mais um copo!”
Arrisco-me
pelas ruas e tenho uma crise de risos cada vez que sinto a Morte
dançar perto de mim. Buzinas, faróis e gritos: “Saia da rua seu
louco!”
Bêbado.
Como
um desvairado num carrossel em giro lento. Dentro de mim, como que
encarcerado numa jaula invisível, o meu bom senso se debate como um
animal. Grita, esperneia, mas o ignoro. Todos os chatos têm de ser
ignorados. “Amanhã, é certo que vou ficar extremamente
constrangido”, digo a alguém que um impulso vindo sei-lá-de-onde,
levou-me a ser mais carinhoso do que permitiria meu bom senso
engaiolado, mas no momento não me parece importante. Eu quis fazer e
fiz. Que há de constrangedor nisso? Que ha de constrangedor em
decidir por um minuto não mais violentar a sua vontade? A vida é
curta, a noite é longa e BH não tem mar, mas tem bar, portanto...
Manhã
seguinte, a ressaca foi o menor dos meus problemas. (mentira! A
ressaca foi o maior dos meus problemas!) Não fiz nada que não tenha
conserto ( a não ser que eu esteja sofrendo de amnésia etílica.
Muito comum em casos de abstêmios que enfiam o pé na jaca.) e
cheguei intacto em casa. Mas recordando-me da sensação de
liberdade... liberdade da angustia e de outras coisas pelas quais
passamos a vida em luta constante, compreendo melhor as pessoas que
bebem. E tive impulsos de fazer a solene e sagrada promessa de
nunca mais voltar beber, mas estou um pouco receoso quanto a fazer
promessas, portanto, em vez de tomar decisões, tomo um
analgésico, porque minha cabeça está explodindo. E fico indeciso
se estar bêbado é um modo de roubar artificialmente um pouco de
felicidade num mundo de dor ou apenas mais um modo de ser mais
estúpido.