“Eu sou do Bem!”
O sujeito, recém-chegado, disse isso tocando solenemente no
próprio peito e com um tom de voz tão afetado que deixava claro o orgulho que sentia de si
mesmo. Isso era tão evidente que era possível ver que se postando assim, do
lado das luzes e das virtudes piedosas, estava acima da ralé humana cheia de
vícios e defeitos. E eu sou, lastimo dizer, desgraçadamente humano.
Já ia ficando de má vontade para com a gabolice dele, porque tenho uma
antiga e desarrazoada antipatia para com os deuses, e ver um semideus de
carne e osso e tão superior bem na minha frente, atiçou todas as cascavéis que
tenho no estômago.
Discursava efusivamente, com gestos teatrais, com a eloquência de
um pregador religioso e a verborragia maçante de um palestrante motivacional.
E como a criatura era bastante performática, literalmente
saltando por entre as cadeiras e mesas, papagueando o tempo todo um discurso hiper-positivo, claro que cativou imediatamente os corações e mentes de todos os presentes,
exceto um, que, como era sabido por todos os presentes, não tinha coração e
duvidava mesmo que tinha uma mente a ser conquistada.
De minha parte, tentei simpatizar com ele tão logo me foi
apresentado. É do tipo que sorri fácil, tem um aperto de mão firme e olha nos
olhos quando o faz, embora o seu olhar não dure nem um segundo, caso se olhe de
volta.
Mas era aparentemente do tipo que não suporta não ser o
centro das atenções e tão logo lhe foi dada a palavra, iniciou o seu monólogo
auto-afirmativo. Falava alto e com gestos tão largos e espalhafatosos (fazendo
círculos e curvas rápidas com os braços), que temi por várias vezes que fosse
fazer voar pelos ares a bandeja de um dos garçons.
Meu primeiro incômodo foi ver que o tal sujeito, a quem
todos gabavam como “um figuraça”, gostava
dessa alcunha, que no meu entender não
tinha nada de elogiosa. Era uma pessoa extravagante e positiva demais para ser levado
a sério, mas a voz alta, o sorriso largo, mais aquela meia dúzia de frases
doces e sedutoras que papagueava para que todos soubessem o quanto ele era “do
bem”, claro, tornaram-no o centro das atenções. Tal como ele, aparentemente,
queria...
Estaria tudo bem, não fosse o fato de que as pessoas na
mesa, habituadas a minha visão niilista e pouco ortodoxa da vida,
imediatamente alçaram o tal sujeito “do bem”, a posição de meu nêmesis:
“Tá
vendo Luiz!?? É assim que você TEM que ser!”
E eu, por entre resmungos mal humorados, fazia pequenas e
silenciosas preces para os deuses em que não acreditava e antipatizava: “Da
boca do lobo, da pata do tigre, da vingança das mulheres e dos 'homens de bem',
livrai-me senhor!”
Aquele sujeito, segundo meus “queridos amigos” a mesa diziam, era a
minha antítese (e logo, um modelo de virtude e bondade que eu devia seguir) e
insistiam que eu Devia ser como aquele cara, porque não tenho certeza do
porquê, mas pessoas próximas que gostam de mim pelas suas razões (equivocadas
ou não), cismam de salvar-me a alma, tentando fazer com que eu seja um anjinho
de candura e bondade cristã, apoiador de boas causas, alguém que professa fé em
Deus, na moral, nos bons costumes e na porcaria do modo de vida americano e
blá-blá-blá... Como se eu não soubesse que gostam de mim exatamente por eu ser
“mau” como sou...
Para a minha sorte, aquele homem continuava metralhando-nos
impiedosamente com suas bravatas auto-afirmativas, proclamando dentre outras
coisas: a defesa da liberdade do Tibete (coisa que todo mundo apoiou sem sequer
saber localizar o Tibete num mapa), a proteção da floresta Amazônica, da fauna,
da flora, das crianças, das baleias, dos rios, a camada de ozônio, os escoteiros, os animais
em extinção, os meninos de rua, os pobres, as minorias, o UNICEF e mais um
porrilhão de outras boas causas.
Estava entretido demais consigo mesmo, encantando com o próprio
coração bom e virtuoso e duvido que fosse capaz de perceber a presença de mais
alguém além de si mesmo, doutro modo teria percebido que as pessoas naquela
mesa se divertiam à custa dele e as minhas, alçando-nos a posição de
antagonistas involuntários.
E eu tinha decidido gostar do sujeito! E eu apoiava quase
todas as “boas causas” que ele defendia!
Mas uma coisa que li há muito tempo num livro do Balzac, foi
o conselho de jamais permitir que digam que você seja um sujeito “divertido”,
porque esta é uma expressão de disfarçado menosprezo. Mas meu brilhante Sir
Galahad, meu belo e encantador “inimigo” do outro lado da mesa, parecia estar
indiferente aos sorrisos sardônicos dos que o aclamavam. Acho que aplausos
devem tornar- nos surdos e cegos para as vaias que rastejam por debaixo dos
mesmos. Mas, claro, essa é uma inferência meramente teórica, posto que não sei e nunca quero saber o que é ser aplaudido.
A bem da verdade, penso que eu estava mais irritado é por
ter aceitado o convite para a bebida e não conseguir encontrar um modo elegante
de cair fora daquela mesa sem parecer estar irritado e mais irritado ainda por
ficar preocupado com o que eu aparentaria ou não.
Olhava para a pregação de boas causas daquele homem e quase
podia ver um halo sobre a sua cabeça e, por comparação e por maioria de votos, constatei que definitivamente, eu sou um sujeito “do mal”.
Pensar nisso
e colocar- me nessa posição, fez com que eu me sentisse razoavelmente confortável
e menos irritadiço. Porque se algo me dava alguma satisfação naquele momento, era me distanciar, no que pudesse, da aura de santidade patética daquele sujeito. Foi então que, para coroar uma frase de efeito ele soltou emocionado essa pérola:
“Porque uma célula feliz, convida a célula do lado: ‘Vem ser
feliz comigo!’ E elas convidam outra e outra e logo todo organismo do sujeito
está iluminado de felicidade!”
Ovação total. Ouviu-se o costumeiro “ohhhh” na mesa, mas
desta feita, alguém que estava ao meu lado teve a feliz ideia de me cutucar
(fisicamente! Praticamente me cravou o cotovelo por entre as costelas.Tem gente que arrisca a vida por pouco...!) quase berrando em
meus ouvidos:
“Tá veeeenndo Luiz!!!”
Engasguei com o ultimo gole de bebida amarga (que a
essas alturas, comparada à bile e à raiva que percorria o veneno vermelho das
minhas veias, estava quase doce), mas terminei a bebida. Até então havia me
limitado a resmungar. Era a minha deixa para ir embora. Disse levantando-me da
mesa:
“Isso tem lá sua lógica...Por exemplo, uma célula em
metástase também convida a célula ao lado; ‘Vem fazer um tumor comigo!’ E elas
juntas fazem um câncer que f@#%m o cara. “
Dito isso, deixei uma nota em cima da mesa para pagar a
minha parte da conta e fui embora. Não ia dar oportunidades para réplicas e essa era uma atitude de óbvia covardia dialética, mas acredito que por umas dez encarnações já esgotei minha cota de pérolas a lançar aos porcos.
Ia emendar um sonoro “vão para o inferno, vocês
todos” ou coisa semelhante, mas já estava longe da mesa e meio arrependido por ter falado aquilo.
Não pelos meus amigos convivas, mas pelo tal “príncipe feliz”.
Certamente não merecia aquilo
e não era um "mau" sujeito.
Eu era.
Eu sou.
E o inferno vai congelar antes que eu mude.
Mas não mau o bastante para não me importar em ferir os
sentimentos dos “bonzinhos” (ai meu deus!Que gente irritante!) com palavras ásperas. Também me
senti levemente contrariado por ter participado contra a minha vontade daquele
espetáculo lamentável.
Aquietei minha atormentada consciência com a constatação
que, muito provavelmente, aquele rapaz sequer ouviu minha grosseria. Como eu
disse, duvido muito que ele ouvisse qualquer coisa que não fossem elogios ou a própria
voz entoando loas a si mesmo.
Quanto aos meus "amigos" que fizeram a gentileza de se
divertir as minhas expensas, não disse, mas reitero o que não disse;
Vão para o diabo sem mim.
Ou deixem-me ir ao diabo sozinho.
Por que haveríamos de ir juntos?
Fora isso, tenho de aceitar que em grande parte a culpa é
minha por ser tão previsível em minhas irritações e por insistir em partilhar
companhias que fazem com que eu, por minha natureza, acabe sendo grosseiro e
tenha cada vez menos (em companhia deles) simpatia por mim mesmo.