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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Subverta-se



Parece até que era uma afronta ou por afronta, mas não, você não escolhia ser um oxímoro ambulante para debochar daqueles que escolhem terceirizar suas escolhas.

Era apenas por sentir que não tinha e nunca teve escolha alguma, a não ser escolher por si mesmo.

Claro, o que acabei de digitar é uma deslavada mentira.
A verdade e que você era assim pelo puro e bruto prazer de andar na direção contrária à multidão. Esse era o único prazer genuíno e digno da grandeza do seu espírito livre. Você sentia que só possuia uma única vida e já não tinha certeza de haver um “segundo tempo” ou então era uma certeza tão tênue, que sem perceber (ou habilmente fingindo não perceber) você permanecia tentando acumular o ouro onde a traça come e o ladrão rouba. .

Você percebia que nasceu sozinho (porque venhamos e convenhamos, sua mãe estava com preocupações maiores naquele momento e só depois do choque inicial do nascimento, é que pode te amparar um pouco), que vivia sozinho porque por mais amigos e amantes e amados tivesse, viessem e se fossem, quem é que sabia ou queria saber o que se passava na escura noite ou nos dias solitários por trás de todos os seus sorrisos e afetações?

E você sabia que morreria também sozinho no final, quando a luz se apagasse e todo o resquício de sua pouca fé seria posta a prova. Onde estariam neste momento aqueles que te amam? Provavelmente ali, segurando a sua mão, sofrendo por você (na verdade, sofrendo por eles mesmos, porque sua morte lhe doeria, mas não faça julgamentos, porque é um sofrimento sincero ainda assim). Estariam ali tentando te dar algum conforto, mas você estaria só, porque seria  o seu coração  parando, a sua respiração cessando e  a sua vida se esvaindo...

Então, porque por vezes se esquece de tudo isso e fica pensando que precisa mesmo estar em uma simbiose psicológica com o mundo? Porque tem de se render a tirania da aceitação alheia numa síndrome de Estocolmo para a sua alma? Porque acha que sua vida deve ser como um maldito comercial de margarina?

Tem um preço a se pagar pela realidade da sua existência, pelo direito de ser você mesmo e pense se ele é tão alto e penoso quanto o valor do ingresso para desaparecer imerso na coletividade sem alma.

O preço é a mais absoluta solidão, mas nesse caso, você vai estar a sós consigo mesmo e eu ainda não sei que melhor companhia possa um ser humano almejar. A solidão não é o demônio que pintam ou pelo menos, não é tão medonho quanto o estrangulamento do seu Eu no coletivo.

Só que te ensinaram a não gostar de estar consigo, a temer ficar sozinho e nu diante de si mesmo, taxaram de egoísta o seu olhar para dentro,chamaram de "masturbação mental", como se um minuto de autismo intelectivo fosse um crime de “lesa humanidade”, quando o que realmente temem é que você se ame mais do que ama aquilo que escolheram que você amasse.


Não sei se é realmente possível amar o que é para você ou o que você tem. Não se ama o que se tem ou o que tem você.Talvez apenas seja possível amar o que é com você. O que coexiste com você em singularidade própria.
Aquilo que não é sua própria imagem distorcida num espelho de vaidades vazias.
Aquilo que não se desconfigurou apenas para agradar seus olhos.
Aquilo que não responde como um autômato à fugaz palpitação dos seus hormônios.
Aquilo que permanece dentro de sua própria pele, sem máscaras, acariciando com amor os limites entre o que é ele e o que é você.
Um ser humano íntegro.
Um Eu que permanece um Eu em sua companhia, sem buscar te sufocar com o nós.
Encontro, sim. Anexação, não! 

Não permita que te convençam de que é desejo seu ter aqueles arreios a tolher sua mente e vontade e vida. Não pague com o ouro da sua liberdade pelos grilhões e pelos serviços do carcereiro. Te ensinaram a temer a noite e você sente frio naquele momento logo após o sol desaparecer, como se fosse a sua vida se pondo com o sol e não subindo com a lua. Mas a noite é só e apenas o outro lado da realidade por detrás dessa gaiola confortável onde você se meteu.
Você é um corvo de plumas obsidianas fingindo ser um canário amarelo, quando devia mesmo era amar ser um corvo. 
Você é um Eloi inocente, alimentado e nutrido pelos Morlocks...Sabe como a história termina.

O que não querem que você saiba, é que não há na floresta lá fora nenhum lobo que seja mais aterrador do que a mão a te colocar alpiste todas as manhãs.
Que a gaiola nem mesmo tem tranca (é o seu medo a te manter preso).
Que você tem asas e elas são tão poderosas quanto for a sua determinação.
Que a árdua sobrevivência é mais gratificante do que a desprezível rendição.
Que mais vale o leão morto em combate na selva do que o poodle vivo no travesseiro de seda.

Nem é preciso pensar muito. É o momento de esquecer a lógica, se esta é mais um elo da longa corrente.
Rebele-se, não contra o mundo, mas contra si mesmo, contra o conforto, contra a maciez da vida de limites auto-impostos. Seja Um. Seja Livre! Chega de andar nas calçadas e na sombra. Arrisque-se.
Ande pelo meio da rua até encontrar um carro sem maçanetas na porta e então, caia para cima como uma estrela ascendente.




quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A vida é Detalhe.




Não me recordo de ninguém estender-me seus sonhos como um tapete (a não naqueles casos de crasso engano. Erraram o endereço da entrega). E forço a mente num esforço inacreditável, para tentar descobrir um só motivo para que alguém o fizesse. Seria uma atitude de uma magnanimidade e também de uma tolice extrema e linda por ambos os motivos. Gosto de gente magnânima e de gente tola. O difícil é discernir entre um e outro. Ainda assim, seguindo o exemplo de alguém bem sábio (tinha muito de magnânimo, mas quase nada de tolo), aprendi a flutuar para não pisar em sonhos alheios, porque é evidente que seguindo a minha natureza distraída, (seria por distração e apenas por isso), eu pisoteasse os anseios oníricos de outrem. Na maioria das vezes não ha recíproca e nesse caso minha outra natureza, a vingativa, derivaria certo prazer nesse vandalismo psicoemocional.

Disseram-me uma vez que a vida é só um detalhe. E a ingratidão da minha memória fraca apagou quem mo disse, de modo que não posso citar a fonte. Sinceramente, a maioria das coisas relevantes naquilo que aprendi ao longo da vida, aprendi das fontes mais inusitadas e por isso mesmo difíceis de ser lembradas. Alguém que encontrei  numa noite dessas, depois de pegar por acaso, a curva errada num sonho desgarrado. Minha natureza distraída me fez conhecer tipos maravilhosos, porque eles quase sempre estão onde ninguém está olhando. E como são esses “lugares” que sempre atraem o meu olhar, tenho cá esse bônus derivado do que deveria ser um deficiência. E foi assim que conheci esse que me sussurrou a irrelevância da vida. Esse alguém não faz questão de ser lembrado e acredito até que se aborrece quando me lembro dele. Desculpe por isso meu amigo onírico, seja lá quem ou o que você for.

“A vida é só um detalhe. A chama fraca de uma vela que o menor sopro pode apagar. Importa mesmo é a luz que se pode derivar dessa chama, porque quando ela se apaga, a luz continua a brilhar por muito tempo”. Foi há algum tempo  embora eu não falasse nada na hora, há uns dois janeiros atrás deixei de estar interessado unicamente na “luz e na virtude”. Escuridão e vício também fazem parte de nós e quem ignora isso é justamente o tipo que sucumbe a eles com mais freqüência. Dois janeiros... Se não me trai novamente a memória foi a mesma época em que apostatei do culto à deusa Felicidade. Tenho mais o que fazer...Cuidar desse detalhe que é a vida.

Foi mais ou menos isso que me disseram ou não. Provavelmente eu disse isso a mim mesmo por entre momentos de pura embriaguês poética, quando meu desejo de que nós sejamos um pouco mais do que carne, sangue e erros, transborda da taça dos meus devaneios.

 Prefiro acreditar que ouvi de outras pessoas, porque como tenho o habito enervante  de sempre me enganar a respeito de coisas boas, embora eu tenha algumas certezas, estou seriamente decidido a duvidar de todas elas.

Acho que estou precisando é  me alegrar um pouco. O planeta não vai cair fora da órbita se eu me alegrar um pouco, relaxar os ombros e parar de fingir que eu sou o Atlas. Eu acho, mas minha megalomania gosta de pensar que sim, que cairia. Daí, em momentos de mau humor eu gargalharia só por picardia e pelo prazer sádico de ver o mundo indo pras cucuias! Alguém aí por acaso tem um pouco de bom senso pra vender? Deixei todo o que tinha nos bolsos de um casaco que estava usando umas seis ou sete encarnações lá atrás...
Sou mesmo ridículo!

Mas tenho salvação.Três coisas são capazes ainda de me inebriar e me deixar contente: Vinho (tinto, suave e bem barato), que me transforma no mais ardoroso e patético dos apaixonados (por tudo); Passar uma tarde a encher o céu de bolhas de sabão com a minha filha; e poesia, que é o melhor  meio de tradução do absurdo e da beleza terrível da vida. Que é só um detalhe.
São mais de onze da noite, e das duas primeiras coisas que me inebriam e me alegram, uma dorme como um passarinho ( e verdade seja dita, que pensaria do precário juízo do seu velho pai se este a convidasse a fazer bolhas de sabão  a estas horas?). A outra, receio que só tenha uma garrafa de vinho seco, caro e horrível! Um...presente de grego que preciso agradecer adequadamente. Vou deixar para temperar carne... A terceira coisa a me deixar feliz parece ter tirado folga essa semana. E eu nem sabia que versos tiravam férias...Fazer o quê...? Ces’t  La vie
E a  vida é só um detalhe...

Valerie



"Eu não sei quem você é. Por favor, acredite. Não há como convencê-lo de que isto não é mais um truque deles.
Mas não importa.
Eu sou eu e não sei quem é você,
Mas eu te amo.
Tenho um lápis, bem pequenininho que eles não encontraram. Escondi dentro de mim. Eu sou uma mulher.
Talvez não possa escrever de novo, por isso essa será uma carta muito longa sobre minha vida. É a única autobiografia que vou escrever e, oh, Deus, estou escrevendo num papel higiênico."

"Eu nasci em 1957. Chovia um bocado. Passei no teste de avaliação e fui pra uma escola feminina.
Eu queria ser atriz.
Conheci minha primeira namorada na escola.
Seu nome era Sara. Tinha quatorze anos e eu quinze. Nós duas estávamos na classe da Srta. Watson.
As mãos dela...Elas eram lindas!
Na aula de biologia, contemplando um feto de coelho num jarro de picles, fiquei ouvindo a Sra. Hird dizer que isso era uma fase da adolescência, que as pessoas superam.
A Sara superou.
Eu não."

"Em 1967 parei de fingir e levei uma namorada, Christine, pra conhecer os meus pais. Uma semana depois fui pra Londres e me matriculei na Escola Dramática. Mamãe disse que eu parti o coração dela...
Mas minha integridade era mais importante. Isso é egoísmo?
Pode não ser muito, mas é tudo o que nos resta aqui.
São os nossos últimos centímetros, mas neles, nós somos livres."

"Londres...
Eu era feliz em Londres.
Em 1981 interpretei Dandini em “Cinderela”, meu primeiro trabalho profissional.
O mundo era estranho, farfalhante e conturbado, com platéias invisíveis por trás das luzes quentes e ofegantes. Glamour..."

"Era excitante e, ao mesmo tempo, solitário...
Eu ia ao Gatewars ou outras casas noturnas, mas eu era bem retraída e não me misturava facilmente. Eu via de tudo, mas nunca me senti confortável. Lá havia muitos que só queriam ser gays. Era a vida deles. Sua ambição. Era só disso que falavam e eu queria mais do que aquilo..."

"O trabalho evoluiu. Consegui pequenos papeis em alguns filmes, depois outros maiores.
Em 1986 participei do “Dunas de Sal”. Ganhou todos os prêmios, mas não o público.
Conheci Ruth trabalhando nele. Fomos morar juntas no dia dos namorados. Ela me mandava rosas e, Deus, nós tínhamos tanto...
Nós nos amávamos e foram os três melhores anos de minha vida."

"Em 1988 veio a guerra.
Depois disso não houve mais rosas.
Para ninguém."

"Em 1992, depois que tomaram o poder, começaram a prender os homossexuais. Levaram Ruth enquanto ela procurava comida. Porque eles têm tanto medo de nós?
Queimaram Ruth com pontas de cigarro e forçaram a coitada a dar nomes. Ela assinou uma declaração de que foi seduzida por mim. Eu não a culpei. Eu amava Ruth, não podia culpá-la...
Mas ela sim.
Ruth se matou em sua cela. Ela não pôde viver depois de me trair. Após ceder aqueles últimos centímetros.
Oh, Ruth..."


"Eles vieram me buscar. Disseram que todos os meus filmes seriam queimados
Rasparam meu cabelo, meteram minha cabeça numa privada e fizeram piadas sobre lésbicas.
Fui trazida para cá e drogada. Não sinto mais minha língua e nem posso falar.
A outra lésbica daqui, Rita, morreu duas semanas atrás e acho que vou morrer logo também.
É estranho que minha vida possa acabar neste lugar horrível. Mas por três anos eu recebi rosas e não tive de prestar contas a ninguém.
Eu vou morrer aqui. Cada centímetro de mim morrerá.
Exceto um."

"Um só.
É pequeno e frágil e é a única coisa do mundo que ainda vale a pena se ter.
Não devemos jamais perdê-lo, vendê-lo ou entregá-lo.
Não podemos deixar que alguém tire de nós.
Não sei quem você é. Se é homem ou mulher.
Talvez eu nunca o veja, nem te abrace, nem bebamos juntos...
...Mas eu te amo.
Espero que consiga fugir.
Espero que o mundo mude, que as coisas melhorem e que, um dia, as rosas voltem.
Queria muito poder te beijar..."
                                               
                                       Valerie

Alan Moore em V, de Vingança

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Metalinguagem


Talvez fosse apenas um ruído. Mas para ouvidos treinados bem poderia ser um Dó Maior ou um Si Bemol. Ouvidos atentos e uma batuta poderiam transformá-lo num Adágio sustenido ou organizar um conjunto deles numa sonata. E embora eu sentisse música até no vento passando pela fresta da janela, nunca achei importante ou soube diferenciar o que era Clássico do que era Barroco ou mesmo uma Marchinha simples do que era Samba de Raiz. E como também tinha uma voz desagradavelmente anasalada, deixei de lado minhas aspirações musicais e me voltei para as cores.

Talvez fosse só uma mancha na tela, mas para olhos atentos bem poderia ser uma possibilidade. Bastava um pouco de boa imaginação junto a um bom pincel e mão hábil que o empunhasse para moldar um sonho na tinta. Como estava sempre desprovido dos dois últimos itens, abandonei desde aí minhas pretensões às artes visuais.

Aprendi a ler e o mundo subitamente ficou enorme.
E então me tornei cego e surdo para tudo o que não estivesse em letras, em linhas e nas entrelinhas. Não estou falando exclusivamente de livros...O caso é que eu não vejo e nem ouço realmente nada. Eu leio tudo. Até mesmo aquilo que não está escrito (e isso curiosamente não permite ser ignorado, de modo que embora não queira, a isso tenho lido mais atentamente). Sons são palavras. Imagens também. Mas para lê-las corretamente é necessário se submeter a algo no som e na imagem que transcende a sua superficialidade... Isso também é ser anacrônico.

Que pena... Talvez eu não me tornasse um Renoir ou um Monet, ou mesmo chegasse próximo da virtude de um Eric Satie ou Villa Lobos, mas é bem possível que eu conseguisse encantar os olhos das pessoas com uma tela colorida ou alegrar uma festinha tocando violão, ao invés de perturbar-lhes os pensamentos obrigando-as a pensar naquilo que não querem. Em vez de me concentrar na respiração entrecortada do flautista por entre as notas e tentar adivinhar se era homem ou mulher, jovem ou idoso a tocar uma ária ou de chamar a atenção para a densidade de um verso numa musica que todo mundo quer simplesmente dançar.

Era só um moleque e fiquei perplexo quando numa festinha, vi um bando de gente dançar ao som destes versos:


"Tudo o que viceja também pode agonizar,
e perder seu brilho em poucas semanas...
E não podemos evitar que a vida trabalhe com seu relógio invisível
Tirando o tempo de tudo o que é perecível..."



Nunca entendi como alguém pode dançar ao som de algo dessa profundidade. Ficar paralisado, absorvendo o impacto daquela letra ao invés de ir dançar como todo mundo acabou com a festa para mim. Ao longo da vida, não foram poucas as festas que arruinei para mim mesmo por causa dessa mesma perplexidade. Para aqueles que seguem a filosofia de "a vida é uma festa", talvez eu tenha arruinado a minha vida.

É certo que eu teria me dado melhor com as meninas quando eu era garoto, se lhes elogiasse os cabelos sedosos e as curvas sinuosas em vez de ficar perguntando o que era aquela sombra que se esgueirava atrás do olhar delas e que elas tentavam disfarçar com sorrisos forçados... Se aprovasse e disse como são lindas todas as coisas que falavam, ao invés de realmente prestar atenção naquilo que diziam sem falar.

Mas pareço ter nascido com o dom de desmanchar a folia dos momentos em que eu deveria simplesmente deixar a maré da superficialidade me levar.

Agora, sem a virtude de um bom pintor ou musicista, lastimo ter de admitir que apesar de saber ler mesmo o que não está escrito, tampouco tenho o dom para as palavras e acabo por perceber que não consigo de fato me comunicar com as pessoas, porque embora seja bom em ler, sou péssimo em escrever, ou seja, é uma comunicação de uma via só. Um monólogo apagado onde deveria arder um diálogo. É mais ou menos como saber tocar piano, mas não ter dedos.

Acabo falando o que não devo, a coisa errada, na hora errada, do jeito mais errado possível. Apenas com a intenção certa. Com malditas boas intenções, que são as piores. E se de “boas intenções o inferno está cheio”, fico me perguntando para onde vão afinal as más intenções...

Ou faço pior ainda, nos momentos em que deixo de ser Eu e tento agir como Nós. Aí acabo agindo como um touro bravo em loja de porcelana. Nesses momentos de ausência do Eu, acrescento analfabetismo intelectual a minha surdes e cegueira emocional.

É comum quando alguém conhece uma pessoa surda e nunca teve contato com alguém nessa condição, a pessoa começar a usar mímica ou mesmo falar aos gritos (como se o outro fosse ouvir ou entender). A sensação é parecida. Ele é surdo, mas é você quem não consegue se comunicar.
É você, quem não consegue se salvar.

Em alguns momentos... Para ser honesto, em momentos mais freqüentes do que gosto de admitir, sou completamente cego, surdo, iletrado e estúpido.

E o inferno sorri...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Pergunta 2



Porque diabos eu vivo me esquecendo de que preciso respirar?

Inadequados


Talvez ele...
Senhor idoso em terno caro e bem cortado e gravata. Um tanto calvo, sem que isso lhe privasse de uma certa exuberância na cabeça. Tinha bigodes grisalhos levemente amarelados pela fumaça de cigarros e sobrancelhas  como lagartas sobre os olhos claros. Era a elegância em pessoa. Deixou o carro parado na avenida Afonso Pena e entrou no parque municipal a pé. Tão logo se sentou num banco, foi “assaltado” por uma multidão de gatos do parque. Saudaram-lhe como a um velho amigo, trançando por entre as pernas, dando mordiscadas nos sapatos de couro. A toda essa manifestação de afeto o senhor elegante suportou com estoicismo e simpatia e ouso até afirmar pela recíproca em afagos e coçadelas nos bichanos, que ele sentia prazer  na companhia dos gatos.
 Gatos são criaturas arredias, desconfiadas por natureza...E os do Parque Municipal tem todos os motivos para serem ainda mais e como eu gosto de qualquer um de quem os gatos gostem, aquele homem conquistou a minha simpatia imediatamente. Um gato castanho subiu-lhe ao ombro, enchendo o terno de pelos. Dois tricolores se revezavam em esfregarem-se nas pernas e muitos outros esperavam a vez ou simplesmente saltavam-lhe ao colo em busca de comida e cumplicidade (duas coisas que conquistam o coração dos bichanos).
O senhor idoso elegantemente vestido tirou dos bolsos o que parecia ser um punhado de ração ou biscoitos. Esparramou aos seus pés e enquanto os gatos se deliciavam, olhava satisfeito para eles. O que quer que fosse estava embalado em papel alumínio (feito em casa) e eu fiquei imaginando aquele senhor, o dia inteiro dentro de algum escritório, participando de reuniões com outros senhores idosos de modos austeros, tendo nos bolsos um pacote de petiscos para os gatos vadios do parque...
Anacrônico...Inadequado...
Muito lírico. Deus! Como eu adoro BH!
Não satisfeito, sacou dos bolsos do terno uma dessas garrafas achatadas que as pessoas costumam usar para guardar bebidas e um pires pequeno. Vodka? Whisky?
Leite!
Passei da curiosidade ao encantamento. Que tipo de ser humano era aquele? Enquanto os gatos tinham o seu festim, fiquei observando melhor aquele homem. Reconheci o cansaço naqueles olhos cor de folha, um cansaço que nada tinha a ver com um estafante dia de trabalho ou com o longo  tempo vivido. Ele já tinha aquele cansaço no olhar desde muito jovem (eu tinha certeza disso). Olhava para o nada, concentrando sua atenção em algo que transcendia os gatos, o burburinho da cidade, o parque lotado de gente e a chuva que ameaçava o céu com nuvens espessas. De vez em quando saia de seus devaneios e tornava a encher o pires de leite. Estranho homem de terno, tendo como fio com a realidade a companhia de uma tribo de gatos vadios no Parque municipal.
De olhar perdido no infinito, ficou durante um longo tempo remoendo em secreto os seus pensamentos, tendo o olhar subitamente desanuviado e o rosto iluminado por um sorriso, quando os gatos tendo terminado o seu pequeno banquete, voltaram a prodigar-lhe os seus mais sinceros e efusivos carinhos. Intruso e espectador, senti impulsos de ir até lá e sentar-me no mesmo banco. Eu não diria nada, é claro. Apenas me deixaria ficar por ali tempo o bastante para unir meu silêncio ao dele. Talvez ele percebesse que existe outro Um.  Que ele não é o único Eu em meio a uma multidão de “nós”.
Antes porem, que eu fizesse qualquer coisa, começou a chover. Gatos correram, pessoas correram, a cidade correu em busca de abrigo. O homem idoso de bigodes amarelados calmamente  recolheu o pires e o papel laminado, rosqueou a garrafa prateada, pôs no bolso do terno, se levantou e andou vagarosamente até o carro, como se não estive caindo um dilúvio do céu nublado. Eu estava meio hipnotizado  pela cena e só percebi que estava  igualmente encharcado muito depois que o carro dele desapareceu subindo a  Av. João Pinheiro.
Talvez ela...
Menina bem jovem. Adolescente com pele muito clarinha de quem nunca pegava sol ou poeira. Tinha toda a aparência de quem jamais andou mais do que uns poucos quarteirões a pé. Estava a minha frente na fila do supermercado. Bonitinha, embora eu não esteja muito certo de saber mais avaliar a beleza dessa faixa etária. Se é que algum dia eu soube.  Havia algo nos seus modos que a faziam destacar na paisagem. Uma leveza estranha, quase surreal. A fila estava longa, final de sexta feira, gente com carrinho lotado de compras a nossa frente, irritados com a demora no atendimento...E ela a placidez em pessoa. Cantarolava baixinho numa língua cheia de “R” que eu não conseguia discernir (gaélico?) uma musica  que era...não sei...Talvez fria demais para aquela voz de Contralto. 
Vestido de algodão cinza e uma jaqueta jeans que já saiu de moda quando eu era garoto. Tênis de tecido e cadarços e um chapéu no mínimo estranho...Parecendo chapéu de pesca (mas que diabos eu entendo de chapéus ou de moda?). Tenho certeza de que aquela roupa ficaria horrível em qualquer uma que não fosse ela. Nela, ficava...encantador. Debaixo da axila tinha um livro que com muito esforço e indiscrição consegui descobrir o título: “Origens do Totalitarismo – Hannah Arendt”.  Olhei para aquele rosto pálido e um tanto infantil e fiquei imaginando porque diabos uma pós-púbere estaria lendo aquele livro.
 Comprava uma beberagem feita de mamão e laranja. Estava na fila há vinte minutos para comprar uma coisa tão... Desimportante... Coisa que ela poderia comprar mais rapidamente na padaria do outro lado da rua. Um livro denso numa mão, uma tolice industrializada na outra.  Uma quelóide numa das narinas, uma argola pequenina na outra. Paciência e persistência em colisão . Dos cabelos bem penteados se destacava uma trança multicolor e na ponta dessas, uma meia lua sorridente.
Anacrônica...Inadequada.
Pagou com algumas moedas que retirou de uma bolsinha em forma de Mickey Mouse. Contou pacientemente as moedas, ignorando por completo as pessoas na fila, que se impacientavam com aquela sua paciência. Antes de sair ela olhou em minha direção, mas não pude ver realmente o seu olhar, porque seu olhar não estava ali. Este se perdeu muitas milhas atrás de mim. Fui atravessado. Ela parecia olhar o mundo como se esse fosse transparente.
Depois que ela saiu já bebendo a sua compra, acompanhei com o olhar enquanto ela atravessava a rua e parava perto de um moleque de rua que lhe falou. Ela sorriu, olhou diretamente para ele, (depois de ter fuzilado uma fila de “pessoas respeitáveis” com seu olhar de raios x).  Apontou na direção da rodoviária. Antes de ir, revirou a bolsa em forma de Mickey Mouse e tirou de lá algumas notas enquanto o moleque de rua, duas vezes mais alto do que ela aproveitava para tomar um pouco da sua bebida. Deu as notas ao moleque, se despediram e ela acenou sorrindo para o garoto. Continuou a tomar a sua bebida e desapareceu virando a esquina com a Rua Goitacazes... Fiquei arrepiado. O que ela tinha acabado de fazer foi perigoso e anti-higiênico, mas lindamente humano.
Na saída do supermercado ainda comprei uma daquelas bebidas que ela tomou.
Horrível! Mas tomei até a caixinha ficar vazia...Persisti até que se tornou a minha bebida favorita.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

V...

Há uma lâmpada quebrada para cada coração partido na Broadway...
A vida é um jogo cheio de luzes que podem ser quebradas.
Você recebe fantasias e um resumo da peça
Depois é largado para improvisar
 Neste vil cabaré...

Não há mais gatinhos sendo acariciados.
Só mandados, formulários, memorandos e ordens de despejo...
Há sexo, morte e imundice humana,  tudo por dez centavos.
Os trens pelo menos saem na hora certa...
Mas não vão a lugar algum.

Diante de suas responsabilidades,
Seja de costas ou de joelhos, há senhoras que gelam
E não ousam partir...
Viúvas que se recusam a chorar vestirão cintas-ligas e gravatas borboletas
E aprenderão a levantar bem alto as suas pernas
Neste vil cabaré.

Finalmente o show de 1998! Balé no palco ardente!
O documentário visto na tela rasgada...
O poema aterrador rabiscado na página amassada.
Há o policial de alma honesta que conhece a cabeça de quem está no timão
Ele resmunga e enche o seu cachimbo com um sentimento de intranqüilidade.
Em seguida, revista rapidamente os restos rotos de uma impressão digital ou mancha escarlate
E empenha-se em ignorar os grilhões que o acorrentam...
Enquanto seu mestre, em trevas próximas, inspeciona as mãos com olhos brutais
Que jamais fitaram as coxas de uma amante, mas que esganaram a garganta de uma nação.
Ele anseia, em seus sonhos secretos, o áspero abraço de máquinas cruéis,
Mas sua amante não é o que parece e ela não deixará  bilhetes.

Finalmente o show de 1998! A tragédia! A grande Ópera Barata!Suspense sem Esperança!
 A Aquarela na galeria inundada.
Há a jovem que quer. Mas ela não pede.
Ela está desesperada pelo amor se seu pai.
Acredita que a mão sob a luva pode ser a que precisa segurar.
Embora duvide da moralidade de seu anfitrião,
Ela decide que será mais feliz na Terra-do-faça-o-que-quiser
Do que ser jogada ao relento.

Mas o pano de fundo se rasga, os cenários desaparecem e o elenco é devorado pela peça.
Há um assassino na matinê.
Há cadáveres na platéia.
Os produtores e atores não estão certos se o show terminou.
Com olhares oblíquos eles esperam suas deixas.
Mas a máscara apenas sorri.

Finalmente o show de 1998! A musica-tema que ninguém conta! O balé do toque de recolher!
A Divina Comédia!
Os olhos de marionetes estranguladas por suas cordas!
Há emoções e calafrios, mulheres em abundância...
Há marchinhas e surpresas, há de tudo, para todos os gostos.
Reserve a sua poltrona!
Há perversos e danosos...
...Mas não há gays...judeus...ou negros...
Neste carnaval de bastardos!
Neste vil cabaré!

Alan Moore

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Entre o Templo e o Arrudas




Acendi a mirra e a vela e recitei o pouco que eu me lembrava de como seria  uma oração. “Deve passar”, pensei...

Soou mais ou menos como um memorando de Departamento Pessoal, mas foi o melhor que pude fazer nas minhas circunstâncias e creio que Deus já me conhece o bastante para perdoar a minha fervorosa falta de fé.

E eu não vou antagonizar quem pode, a qualquer momento e por razões que eu nunca vou compreender me vaporizar com um raio ou coisa que o valha.
Não que isso importe.

Parece-me muito mais glorioso morrer fulminado por um raio do que atacado de sífilis ou hérnia de disco, supondo-se que alguém ainda morra de sífilis ou que hérnia mate ou mesmo que haja glória em algum tipo de morte.

E eu fico aqui, conjecturando a natureza do divino e me sentindo um rematado tolo por estar orando para divindades nas quais nem mesmo acredito.

Certo...Eu sei que estou pensando demais na morte, mas o que você queria? Templos religiosos não são sempre uma droga de lembrança de que vamos todos morrer?.
Caramba!
Que pensamentos para se ter ajoelhado diante de um altar!

Não sei o nome da divindade, santo ou seja lá o que era aquela imagem levemente andrógina para quem  dirigi preces. Eu deveria ter arrematado o meu arremedo de oração com um “a quem interessar possa”, mas claro, minha irreverência tem o limite exato da autopreservação.
Nem mesmo sei que raios de templo era aquele  em que entrei. Não sei de nada.  Apenas sei que prometi rezar e apesar de saber que muitas coisas estão além das minhas lágrimas ou orações, eu sei também que ainda estou próximo demais da droga da minha consciência que não me permite quebrar uma promessa. Lembre-me de nunca fazer promessa para não ter que ser tentado a quebrá-las

Gostei da calmante luz de velas e o sacerdote até que foi bem simpático e entendeu sem que eu precisasse dizer que eu queria ficar sozinho. Isso foi bem constrangedor...Não gosto de sacerdotes e não queria simpatizar com aquele. Fazer-se simpatizar contra a minha vontade foi uma violência por parte daquele padre, pastor, rabino ou seja lá o que ele era e eu fiquei irritado por ficar pensando nele com simpatia.

“Que droga estou fazendo aqui?”

Pedir alguma coisa aos deuses me parece como comprar alguma coisa  naqueles sites que nunca te entregam o que você comprou, mas te mandam um monte de emails justificando a demora. “Nós só queremos o seu bem estar, e o de sua família”.
E sem SAC  ou 0800 para reclamar!

Ainda assim usei todo o fervor de que dispunha, o que não era muito. Gastei boa parte da minha energia numa inútil discussão de trânsito pela manhã. Entre uma conta  e outra do japamala (ou terço..não se a diferença) ocultei durante todo o tempo em que estive ali em devoção, o que eu realmente queria dizer a Deus. Mas aliviava a minha consciência saber que ele sabia que todos ajoelhados ali evitavam pedir o que realmente lhe ia ao coração. Era estranho pensar que eu estava irmanado àquelas pessoas devotas justamente em minha falsidade litúrgica.

Não tenho fé do tamanho de uma semente de mostarda para pedir algo aos deuses, mas a tenho do tamanho de uma montanha para jogar uma moeda no arrudas e fazer um pedido.
Terminei o que fui fazer ali e na saída pedi ao santo ou divindade entalhado em gesso pintado de bronze, que se não pudesse por qualquer motivo me atender no que eu havia pedido, pelo menos me desse a graça de jamais permitir que eu me ajoelhe novamente diante de um altar.  Se não me atendesse em ambos os casos, poderia ir pro inferno. Ou me mandar pra lá. Pouco me importava...

Só para me certificar, na saída parei em cima do Boulevard Arrudas e gastei uns oito minutos revirando os bolsos atrás de uma moeda....


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