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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Cognitio




Minha historia foi a seguinte:

Eu nasci, vivi e eu morri.
Vivi como um homem de fé, procurei a virtude piedosa e quando morri, estava certo de entrar numa outra vida e num modo melhor de existência, mas quando a luz se apagou...nada! Não havia nada lá e  eu estava morto e acabado e...

Espere aí! Isso não pode estar certo! Como eu poderia ter acabado se estou aqui a contar isso??

Na verdade não foi assim que aconteceu. Eu vivi e eu morri.
Mas eu vivi como um Ateu fundamentalista, victo e convicto e morri assim. Em meus momentos finais escarneci da morte, ri-me das preces dos meus tolos entes queridos por minha alma inexistente e apaguei. Esperava depois de morto...Nada. Mas para a minha surpresa, havia um depois, um além. Cheguei a um lugar que não era um lugar, mas um conceito. Daí pensei:
“Diabos! E não é que aquele bando de religiosos tinha razão?”
E agora?


Ah, cometi um equivoco aqui. Devem me perdoar. Não se pode se fiar na própria memória depois de morto. A verdade é que eu morri. Mas havia vivido como um cristão devotado e sincero. Quando segui a luz e cheguei perto do trono de Deus...Essa não! Jesus não estava ali. Era o Ganesha sentado no trono! E eu havia até mesmo debochado daquele deus-menino-elefante de quatro braços enquanto estava vivo! 
E agora?

Não.... Agora tenho certeza. Foi assim. 
Eu vivi e depois morri. 
Mas havia vivido a vida toda como um Budista fiel. Depois que abandonei minha carne, sabia que depois de ter vivido corretamente no caminho óctuplo, iria alcançar o  Nirvana, mas cheguei num lugar onde havia um trono e sentado no trono, reconheci de imediato aquela figura. 
Por todos os sagrados Lamas, aquele era Jesus!
E agora?

...

Eu morri como vivi.
Na dúvida. Nunca encontrei um modo mais honesto de se viver, o que talvez tenha sido um erro. Talvez meu único acerto. Estava prestes a descobrir.
Ou não...

Estava apavorado diante do novo, do incerto, daquilo do qual tudo e tanto especulei, mas nada sabia de fato. 

Eu estava saindo do mundo tão ignorante e desamparado quanto quando nele entrei. E assim como estava preparado para nele entrar, mesmo indefeso e com medo, estava preparado para dele sair. Engraçado como a morte e a vida parecem  portas de passagem para as mesmas incertezas...

Fiquei feliz pela minha vida não passar diante de mim como num filme, como eu ouvi certa vez que acontecia. Eu conhecia bem o roteiro e no geral, odeio reprises. E seria maçante ter de repassar todo o tédio de uma existência de desequilíbrio, alegrias, tristezas, rever rostos amados apagados pelo tempo e circunstâncias e idade; e apegar- me à lembrança renovada deles, o que tornaria minha morte mais dolorosa do que devia. Se é que deveria haver alguma dor na morte, como tanta houve na vida. Eu devia abandonar aquilo, do mesmo modo que abandonei o conforto do útero, para correr a corrida humana.

Mãos dadas com o meu medo e desamparo, havia uma esperança, tão tênue quanto o fôlego que me abandonava.

Torcia no meu intimo, que todos, absolutamente todos aqueles que ao longo da vida me apontaram dedos acusadores e caminhos para a salvação, estivessem certos e eu entrasse numa outra vida, ainda que fosse para ser punido num inferno porque qualquer forma de existência, mesmo penosa, parecia-me preferível a desaparecer para sempre. Supondo que há uma alma, a alma não reconhece o nada.

Mas torcia ainda mais, para que os deuses, se existissem, fossem mais piedosos e compreensivos do que seus muitos arautos, que condenaram a minha humanidade frágil por eu nunca estar a altura de sua semi-divindade, e se apiedassem de mim, antes poderoso e viril, agora quebrado, sozinho.

Pensei na minha mãe. Fazia muitos, muitos anos que eu não pensava nela. Talvez esperasse que ela estivesse lá para me embalar, me segurar e cuidar de mim, como fez antes, mas, claro, era uma espera tão imersa na incerteza quanto a que experimentei naqueles segundos traumáticos depois do parto. Eu esperava, mas duvidava que ela estivesse lá; uma estranha esperança na qual não podia me apegar. Uma esperança desesperada.

Apaguei como uma vela soprada e não houve nem túnel de luz e nem um coro de anjos a me saudar. Tudo bem. Eu já estava, depois de uma longa carreira no mundo humano, desprovido da vaidade de esperar cerimônias e honrarias. Eu não esperava um coro. Apenas esperava que houvesse alguém lá que me recebesse. Que houvesse um lá e que houvesse um alguém.

Eu morri e fui levado pelas mãos do nada. Era o que fui a vida toda; um passarinho atordoado na tempestade, chicoteado pelo vento, desejando que depois daquela cortina de nuvens escuras, houvesse um galho qualquer de uma árvore qualquer, onde eu pudesse por fim repousar as asas cansadas.

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