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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

De quando quase meti a colher



Praça de alimentação, Shopping Cidade às três da tarde. 
Casal jovem. 
Ele, cara  bonitinho, como as pessoas entendem a beleza masculina. 
Sentaram bem perto de mim, brigando sei lá por qual motivo, mas meio que ocuparam o banco em que eu estava sentado, me “convidando” a sair dali. Mas como não chegaram a me solicitar polidamente e se permitiram me ignorar, deixei-me ficar por minha vez, ignorando-os também. 
Ou tentando pelo menos.

Brigavam.

Na verdade, era o garoto que gritava como um lunático, coisa bastante desagradável em se tratando de um local público e ainda mais sentado a centímetros de alguém que já estava lá e nada tinha a ver com a lide.

Mas, meu deus, esses “playboys” todos tem o mesmo cheiro! Cheiro de sabonete, mas um cheiro nauseante, como se esses caras comessem uma dieta qualquer que os fizessem suar uma murrinha esquisita...

Certo. Estava de má vontade (e nunca vi um ser humano completamente isento de antipatias e não sou exceção!) para com aquele tipo e tudo nele me desagradaria, ainda que ele exalasse sândalo em vez de almíscar azedo...

Ela, garota linda (como meus olhos entendem a beleza feminina). 
Cheirava maravilhosamente bem, mas acho que meu nariz tem predileção especial pelo aroma doce da progesterona, mesmo por debaixo daquela camada de perfumes e cremes todos. Discutiam acidamente por alguma coisa e não, não estou orgulhoso por, mesmo sem querer, ter ouvido sorrateiramente conversa alheia. 

Azar.

Casal discutindo todo lugar tem. E se a eles não ocorre lavar a droga da roupa suja em casa, problema deles caso  orelhas involuntariamente curiosas estejam ali, ávidas por perscrutar os detalhes do entrevero.

Mas minha bisbilhotice não foi completamente saciada. Chegaram ali já no ápice da questão, naquele momento tenso em que em muitos casos a coisa já culminou para as vias de fato.

Mas era uma briga de casal e jamais me ocorreria que a coisa pudesse descambar (em se tratando de uma rixa homem – mulher) para a violência física. Mas o sujeito gritou com a garota um “vai tomar no @#%! “ com tanta fúria  na voz, que tive um súbito mal estar. “Que diabos esse cara tem? Está drogado?”

Mulheres são criaturas deliciosas e enervantes, isso é certo.
Por vezes, tanto mais deliciosas quanto mais enervantes. Posso listar dúzia e meia de ocasiões, e só no ultimo semestre, em que uma ou outra mulher, nas muitas instâncias da minha vida, me tirou do sério. Mas nada, nada mesmo justifica uma atitude de violência, mesmo moral ou vocal, de um homem contra uma mulher. 
Não da parte de um homem de verdade. 

E isso pode até ser um chauvinismo tolo da minha parte, mas senti ânsias de partir pra pancada com o sujeito e com certeza o faria, se ele tivesse tocado naquela garota, que fosse lá namorada dele ou não, não lhe dava direto de gritar aquela grosseria. E num shopping  cheio de crianças!

Pensando nisso, me ocorre que é a segunda vez em menos de um semestre, fico excitado com a possibilidade de me meter numa briga e levar uns socos, o que talvez mostre preocupantes sinais de sentimentos de autodestruição de minha parte. Mas é maçante ficar o tempo todo indagando das próprias motivações como se a droga do mundo fosse uma extensão da droga do divã.

Azar(2)!

Olhei para os lados. 
Nada de seguranças ou coisa semelhante. Certos profissionais têm o dom de desaparecer de vista quando mais se precisa deles. Isso tudo aconteceu no espaço de minutos, tempo insuficiente para se tomar decisões que poderiam acabar na delegacia ou no hospital. 

É só que tem horas que, ou se mete  colher  ou se encolhe como um covarde e depois vai pra um canto qualquer remoer um desagradável auto-desprezo.
Acho que ia me meter em confusão dos diabos.

E a coisa ia por aí...Eu já sentindo engulhos de partir pra pancada com o sujeito, quando a menina levantou-se do banco, olhou-o com um olhar triste e num meio sorriso disse com suavidade:

“Espero que você tenha câncer...”

E foi embora.

“Espero que você tenha câncer”!!!!

Jesus! Fiquei ali paralisado, sentado com aquele sujeito cheirando a sabonete e murrinha! Nós dois com a boca aberta e olhos arregalados.

Quase quatro décadas de vida e nunca vi ninguém desejar semelhante coisa a alguém. Nunca vi ninguém sentir um ódio tão profundo por alguém a ponto de desejar-lhe que tenha câncer. Ah...Em outra situação, teria rido do tal sujeito, pois era um tipo estúpido que bem merecia um insulto, mas enquanto ele se afastava com a cabeça baixa (talvez digerindo aquelas palavras ditas com gelo na voz), senti dele uma inveja enorme.

É fato, o cara era um FDP², mas o era de tal modo, que conseguia inspirar naquela moça bonita o ódio mais maravilhosamente autêntico que já vi alguém expressar.


E ódio autêntico é certamente muito mais doce de ser usufruído do que um amor por vezes titubeante.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Do que escrevi em caixa de sugestões....

...E se posso recomendar, perca o hábito de ter hábitos...

Os dilemas de um homem sutil




"Ouse, ouse... ouse tudo!!! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. 

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!"


Lou Andeas Salomé


Eu ia dizer que é engraçado como, diferente dos cérebros que os pensam, certos pensamentos nunca envelhecem.  Como esse de Lou Salomé...
Mas a verdade é que isso não chega a ter graça.
Isso sequer é uma coisa extraordinária.
Isso simplesmente é.

E a natureza de um homem por vezes se volta contra a simplicidade das coisas e ele se rebela contra a simplicidade, quando talvez fosse mais sábio rebelar-se contra a sua natureza. 
Intimamente, arde-lhe uma certeza velada e uma voz lhe sussurra: "Não é assim. Deve haver algo mais".
E com uma frequência desconcertante ele tem confirmações excessivas da simplicidade do mundo, enquanto anda as cegas, procurando o sentido profundo das coisas.
O que quer que isso seja.

Há no mundo um tipo de lógica matematicamente cruel.
Verdades cruas, que só o paladar de um selvagem pode apreciar com refinamento.

Por exemplo, que não se pode aparentemente obter uma quota de alegria sem que em algum lugar a balança pese em sentido contrário e como resultado, o seu deleite se converte em desespero para outrem.

A vida dá mesmo poucos presentes.
Em compensação, pode tirar tudo o que você consegue obter. Pisque os olhos e já foi.
Você ficou velho, perdeu muito e ainda não encontrou a droga do sentido profundo das coisas.
A duras penas vem, facilmente se vai.
E tem verdades que incomodam, mesmo quando se passa pelo próprio julgamento.
Deve certamente, haver algo de errado quando você começa a pensar que ver alguém se desvencilhar de ideias velhas é tão ou mais sedutor do que uma mulher se despindo.

E quando se começa a questionar, sem aquele constrangimento próprio de quem se pensa virtuoso, a natureza do que chamamos de bem e mal e se percebe que é tudo uma questão de tempo e momento histórico e retórica e cultura, põe-se em cheque a própria concepção do que é ser humano.

Princípios são coisas traiçoeiras e submeter-se a eles é meter-se numa paralisia moral enquanto sua vida cai a sua volta como um castelo de cartas.

Então as veredas, diferentes daquela trilhada tão teimosamente, se abrem como um mar de possibilidades quando se quebra certas correntes, mas a paralisia está não somente no apego as ideias velhas, mas na consciência de que ha preços que não se pode pagar.


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Da musica de Gonzaguinha e do que me falta





Na manhã do dia 19 de dezembro de 1973, Saturno devia estar dando um “rolê” ali pela  casa de Plutão e Sagitário estava alinhado com a constelação de peixes....

E eu estou fingindo pessimamente que sei qualquer coisa de zodíaco para explicar coisas para as quais não encontro explicação.

Por exemplo, o fato de que, sendo um modelo da safra de 73, vim com itens de série, mas diferente dos demais que saíram daquela fornada, aparentemente me fabricaram desprovido do dispositivo singular chamado coloquialmente de “botão-do-foda-se”.

E olha que já revirei cada canto metafísico meu a cata do dito cujo, porque quantas e tantas vezes me exortaram a ligar o danado, perdi a conta. Ou então eu estou procurando no lugar errado, e esse item esteja escondido somaticamente, por detrás do baço ou por dentro do pâncreas ou em qualquer outro lugar inacessível a minha percepção ou toque e, portanto, inviabilizado de ser acionado.

Talvez seja o caso de fazer um recall, mas meus pais, em tese, tinham justamente função de me fazer negar a existência do meu inexistente “botão-do-foda-se” e ser miseravelmente responsável. Então como vou lá eu aos enta anos pedir que me equipem com algo que deveriam - em tese(2) - prover-me na concepção?

Talvez devesse pedir pra Deus então, mas ainda que eu soubesse a qual dessa miríade de seres superiores que existem - em tese(3) -acima do céu monoteísta – em tese(4) –  pedir, até o momento, ele(a) tem solenemente ignorado todas as orações sem fé que tenho deixado em secretária eletrônica.

Até onde posso ver, sou despossuido desse dispositivo.

Isso talvez explique o porquê de eu nem mesmo conseguir ouvir uma musica sem pensá-la.
Diabos, deve ser bom demais estar dentro da própria pele sem senti-la como a um casaco velho grande ou pequeno demais que lhe deram!

Tem dias em que o desassossego metafísico é uma goteira na cabeceira em noite chuvosa.


“Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...”.

Saudoso Gonzaguinha...
Que há de belo em ser um sempre e sempre a-luno (sem luz) é coisa que me escapa, justamente porque talvez eu não tenha aprendido a aprender e a fruir prazer do aprendizado.
Ou da ignorância.

Acho que estava ocupado demais medindo e remoendo as dimensões da minha angustia por ser tão ignorante.

E no processo acabei, contrário ao que diz a sua bela canção, desenvolvendo uma sutil vergonha de ser tão infeliz ou (in)feliz, até que compreendi que essa é, essencialmente, a minha natureza. E só às vezes ouso pensar que essa é a condição de qualquer ser humano, o que nos move como criaturas desejantes e insatisfeitas, mas ao que parece, também me falta, além do tal “botão-do-foda-se” (e talvez justamente por isso), a capacidade de fingir para mim mesmo que não ligo para isso.

Melhor que o corvo ame o negrume de suas penas, ou vai passar uma vida miserável tentando piar como a um canário.

Não aprendi e não sei o que é aprender.
Talvez também nem mesmo saiba o que é belo. 
Eu sei o que me atrai e com alguma certeza, posso dizer que nem sempre é o que se chamaria de “bonito”.

Minhas respostas nunca foram puras, mesmo quando eu era - em tese(5) - criança.

Acho que sequer tive respostas a dar, só (até o momento) irrespondíveis perguntas puras.

Mas, é claro, isso também não impede que eu repita:

É a vida, é a vida e é a vida!



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Dividindo o que me ocorre (pura e simplesmente)

...E estou quase me alforriando de uma labuta de cinco anos.
E se tempo é dinheiro, reitero que ando sem sequer um minuto nos bolsos.
Não dá pra escrever nada que seja minimamente decente...

Mas me ocorreu algo e senti impulsos de dividir.

Daí me irritei e pensei; "Cara, isso daí é 'felizinho' e senso-comum demais para merecer consideração". Mas como ando desconfiado até das minhas implicâncias e o que me ocorreu é importante, eis:

   Um luto devidamente elaborado é quando você pára de lamentar o fato de alguém ter morrido, (embora fique surpreso com o fato de o mundo ainda não ter caído no sol por esta pessoa ter morrido) e quando começa finalmente a celebrar o fato maravilhoso de que essa pessoa viveu.

Porque de alguma forma muito subjetiva, seria inadmissível passar a vida sem a consciência de ela ter vivido...



quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Raciologicando (por não ter nada melhor a fazer)

...E eu ainda não vi uma só vidraça que não fizesse, indecentemente, um convite a todas as pedradas do mundo.
E realmente gostaria que meus ossos fossem tão resistentes quanto a obstinação do meu orgulho.

Daí eu seria imortal e talvez estivesse ainda por aqui quando todas as vidraças, pedradas e orgulhos já estivessem extintos por sob a poeira da história..

Por outro lado, é uma manhã tépida de uma quinta-feira tépida num mundo tépido.

E essa vai ser toda a angustia a que me vou permitir por hoje...

...................................................

Um adendo tardio: Seria bom ou não tão mau, que as pessoas à minha volta, só às vezes, se lembrassem de que eu sou um Psicólogo....

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Você não sabe de nada, Luiz!



Acabo de devorar as 811 páginas de “Dança dos Dragões”, de George R.R. Martin. 
Já aviso que não vem spoiler neste post, embora eu goste de ler spoilers e fico sempre pensando na logica de comprar um livro ou assistir a um filme sem saber antecipadamente  do enredo (as chances de levar lebre por gato é sempre uma constante), mas serei cioso de quem tem fobia de spoiler ou prefere ser surpreendido pelos acontecimentos em vez de degustar com vagar as  minucias literárias ou performáticas de atores.

Também não vou falar do meu entusiasmo por George R. R. Martin (e do meu pavor que o velhinho  caprichoso morra antes de concluir sua saga ou de que ele resolva que  mais algum personagem maravilhoso morra). Além do mais, estou meio apaixonado pela saga de R. Martin e eu penso em meu torto pensar que nós sempre ficamos um tanto bobos quando estamos apaixonados. Eu sou um entusiasta muito patético e a consciência disso dói e eu estou em dúvidas se existe algo que doa mais do que consciência. 
Tem sensações que eu prefiro, quando possível, evitar.

Então, permitam-me dividir o meu estranho reconhecimento por uma frase que surgiu por varias vezes ao longo do texto:
Você não sabe nada, Jon Snow.

O porquê de destacar essa frase de todo o enredo maravilhoso de “Dança dos Dragões” eu explico após uma breve e tediosa história:

No comecinho da década de 90 um grupo de garotos se reunia na Praça da Savassi umas duas vezes por mês para jogar RPG. Até então as cartas e os dados eram difíceis de conseguir, sendo a maioria importada e em inglês ou em japonês. O detalhe é que nenhum dos garotos sabia falar essas línguas, o que tornava o jogo ainda mais desafiador. Um desses meninos era uma esquálida criatura de hábitos. Deu-se razoavelmente bem jogando e ganhando algumas rodadas usando um personagem Wizard ou Sage ( como vinham nas cartas), resultado que não conseguiu repetir usando outras categorias de avatar. Essa persistência em utilizar esse tipo de personagem (mais a mania de falar demais e de estar, irritantemente, sempre certo) valeu-lhe a infeliz alcunha de Sage, apelido que lhe acompanhou até a vida adulta e que, para mal de seus pecados, manteve, quando começou a se aventurar pela internet e precisou de um nickname.

É realmente uma lástima ter muita consciência, mas pouca imaginação.

Esse garoto, agora perdido por entre o labirinto de Eus dentro deste adulto que vos digita, nunca foi e nunca se viu como alguém sábio, e na verdade, ainda o sinto em alguma dobra perdida das minhas contradições, a revoltar-se contra a ideia de ser sábio. Ele se inquieta em algum lugar ermo de mim e me causa náuseas morais  cada vez que alguém me diz que sou inteligente. A isto respondo como num vômito raivoso e cansarregado de ironias:

Mesmo? Pois eu preferia ser bonito ou então ter sorte!

 Jesus e todos os deuses sabem que eu trocaria de bom grado vinte pontos de QI por um par de ombros largos ou dentes perfeitos ou uma barriga musculosa. Ou os 1,85 m do meu irmão ou os cabelos de mel da minha filha ou a pele maravilhosa daquele rapaz que me vendeu balas intragáveis no ônibus um dia desses...
Mas que sei eu?
Não sei de nada.
Nada...
Então talvez eu não tenha nenhum ponto de QI que possa investir numa barganha por algum atributo que me faça sonambulear melhor pela vida...

Você não sabe de nada, Luiz!
Tenho ouvido isso com tanta frequência e de pessoas tão separadas por tempo, espaço, cultura e situações que sinto aquele estranhamento peculiar de quem subitamente toma consciência de uma dolorosa verdade absoluta.

Você não sabe de nada, Luiz!

Daí a minha sensação de deja vu a cada vez que li em  “Dança dos Dragões” essa frase que ficava pairando sobre a cabeça do personagem Jon Snow.

E eu não sei nada. Talvez fosse o caso de perguntar se alguém realmente sabe, mas estou quase certo de que não vou compreender a resposta.

Não que isso importe. Tenho problemas demais em lidar com a antiga e constantemente renovada consciência da minha própria ignorância, para queimar meus neurônios decadentes meditando o não-saber alheio. O que me incomoda é o fato de que quando alguém me diz: "Você não sabe de nada", está afirmando implicitamente que ela sabe, mas não está e não me parece disposta a me ensinar o que eu não sei e a partilhar o que ela sabe, porque sabendo e mantendo-me na ignorância, mantém também o seu poder e superioridade sobre mim.

E eis o que vim lhes anunciar hoje senhores:

A vossa superioridade.
São, todos vocês, superiores a mim.

Todos vocês, os que sabem, os que conhecem o que há por detrás das máscaras e das palavras. Os que compreendem os meandros e sutilezas das linguagens e das intenções humanas.

Vocês, os que tem defesas, os que conseguem dormir e olhar nos olhos uns dos outros enquanto dormem...

Porque vocês sabem algo que eu ignoro e eu sempre serei um ignorante. E não falo de ignorância socrática, não é o princípio da sabedoria, mas de uma terrificante consciência de que não posso me fiar nem mesmo na minha capacidade de levantar dúvidas.

Eu não sei.
Mas vocês sabem.
Sabem e não vão me ensinar nada e nem eu tenho as condições reais e necessárias para aprender sozinho ou com preceptores.
 Possivelmente, algum defeito na minha capacidade cognitiva ou esse excesso de ligação com o absurdo, fazem-me refém de um autismo moral e eu permaneço em transe, meditando meus próprios processos enquanto a minha volta o mundo gira e muda, as pessoas amam, odeiam, vem e vão e eu permaneço perplexo com os grão de poeira em suspensão nos raios de sol da tarde.

Fiz a mim mesmo uma piada cruel quando nomeei-me Sage, porque intimamente eu sabia que de sábio eu nunca tive nada.  Era, não uma afirmação do que eu pensava ser, mas a de um desejo e uma busca.
Quando o meu ridículo ficou auto-evidente, criatura de hábitos que sou, acrescentei um singelo “h”, para mudar o sentido e transformar o que era um inadequado apelido em algo parecido a um nome. Sahge, porém,  não é menos ridículo ou mais adequado. Por outro lado, se chegarem-se a porta de onde trabalho e perguntarem: “Quem é o Luiz?” cinco ou seis pessoas (dependendo do dia) olharão em sua direção, mas uma delas, e apenas uma delas, é o Luiz que não sabe de nada.
Você não sabe de nada, Luiz.

Verdade absoluta.

Não sei lidar com verdades absolutas.
Não sei de nada, mas bem podiam ter me deixado na ignorância disso também.
Talvez, contrário ao que diz a fé de muitas pessoas, Deus tenha inventado o álcool.
Mas veio o Diabo (sacana dos infernos literais e imaginários) e inventou a solene e ridícula promessa de não beber mais.
E os dois sabem bem que eu, ainda na temporada de trocas, negociaria a receita da Pedra Filosofal e do Elixir da Vida, pelo esquecimento da minha própria ignorância que me proporcionaria uma garrafa ou duas de qualquer bebida ordinária.






domingo, 3 de novembro de 2013

Talvez (elevado a sexta potência)


Dialetizemos as nossas discordâncias na imagem acima.
O que você chama de "felicidade" está aparentemente à esquerda.
O que eu penso ser "liberdade" segue à direita...
É possível que estejamos ambos  em erro e que nem você seja tão feliz quanto pensa e tampouco eu seja verdadeiramente livre.
Talvez eu acabe ficando prisioneiro de minha singularidade,
Talvez você se torne livre do compromisso de ser alguém único...
Talvez seja alto o preço a se pagar por ser livre e, consequentemente, solitário.
Talvez a felicidade da multidão seja uma alegria menor ao que deseja a sua alma...
E talvez eu que busco a liberdade, acabe por me tornar feliz por ter a mim mesmo
E ao abraçar o mundo, você perceba que ficou de mãos vazias,
Ou privando-se de si mesmo você tenha tudo...

Mas aqui, nessa encruzilhada onde nossos caminhos se separam (e porque apenas eu questiono)
Me questiono, e ao fazê-lo penso
Que talvez eu, que questiono, já seja livre, porque ter certeza é ser prisioneiro.
E você, que segue o mundo sem questionar, já seja feliz, porque ser prisioneiro é, de alguma forma, estar seguro...


Fonte da imagem http://www.caulos.com/

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sobre os seus olhos azuis...


É claro que te amam, e é claro que é por causa dos seus olhos azuis...
O grande problema é que, a menos que seu datolnismo moral se tenha infiltrado pela córnea adentro, meu caro, você absolutamente não tem olhos azuis. Eles são tão castanhos quanto seu espírito indócil. Se não me acredita vá lá se olhar ao espelho e esquece a vermelhidão e os relâmpagos.

Eles são resultantes dos dias de sonambulismo, de pesadelos despertos, da fumaça e poluição dessa BH de papel e da sua necessidade há muito negligenciada de óculos e sono.

Não. Definitivamente você não tem olhos azuis.
Então o quê...?
Você é um príncipe feliz por acaso?
É uma alma doce?
Afinal as pessoas te amam...
É o que te dizem...

 Mas as pessoas amam coisas demais.
 Elas amam sorvetes, cachorrinhos e dias ensolarados. A suavidade das ilusões cantadas em versos e trovas, as fantasias que empurram para longe os terrores imaginários das longas noites...
Elas amam praticamente tudo o que é doce, macio, suave e "bom".
 E, bom, não há e nem nunca houve muita suavidade nas suas palavras ou doçura no seu olhar feroz.

Poderíamos imaginar que talvez seja essa sua elegância meio pedante, essa sofisticação decadente (a sofisticação de um super-vilão de primeira linha) ou talvez seja esse seu ar zombeteiro e o humor mordaz, que passa a impressão de que talvez você seja o tipo de diamante bruto a ser lapidado, uma alma carente e boa que, privada de calor desenvolveu espinhos, mas que em terreno fértil de afagos e mimos faria germinar um menestrel delicado e gentil.
 ...
...!!
 (Ceeeerrto... Reconheço que eu mereci isso. Assim que você conseguir parar com essa risada demoníaca, eu continuo)
 ...
Seja sincero, ao menos no que lhe pesa a verdade das coisas...
Não há que se deter em miragens ou andar em transe pelo deserto.
Há qualquer coisa de equivocado nessas declarações de amor e você não deve repousar em ninho alheio a asa da sua inquietação.

 Porque a menos que alguém te diga:

 "Eu te amo, por sua constante e cortante dor de viver, pelo amor que ferve em suas entranhas junto ao ódio que gela sua alma, pela visão trágica e poética que você tem do mundo, pela sua inadequação, pelas suas contradições, pela sua sabedoria um tanto louca, pela sua ignorância sábia, pelo seu olhar perdido e pelo fato de que está sempre a deriva e naufrago de si mesmo, pelos seus balbucios e pelo seu tatear na vida e por detestar a si mesmo tanto quanto ama tudo o que você é sem o saber: por tudo isso e mais e além; eu te amo!" 

A menos que ouça isso, meu caro, dito por alguém que te olha nos olhos e vê-se refletido no seu castanho, tem de saber, por triste que seja ao seu coração e doloroso ao seu ego, que definitivamente, você nunca foi amado, porque amam uma ficção do que você é...

Fumaça na neblina...


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Raciologicando ao cubo...

Pensamento breve, para uma quinta-feira de brevidades: O maravilhoso neste universo terrível, é que algumas coisas mudam sempre, e o fazem (por uma necessidade inconsciente). E qualquer coincidência disso com a realidade, está longe de ser uma mera semelhança.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Da Anatomia Da Ordem e do Caos

E o caos, contraditoriamente, está na ordem do dia.

Acho que aquela parte metafísica do homem que costumeiramente chamamos de “coração” é o mais vigoroso agente e também morada do caos em nós.  

Por outro lado, se existe um órgão humano que está ligado à ordem das coisas, esse é o estômago. Porque é o estômago a doer quando as coisas estão caóticas, um formigamento próximo ao diafragma que pede desesperadamente para que as coisas se aquietem de alguma forma.

Elas tendem a aquietar-se, porque a diferença entre o homem e o universo que o cerca (e também o que nos torna singulares), é que o homem tende ao caos, mas o universo tende a ordenar-se e a aquietar-se, daí o homem ser, para prejuízo seu, um ser rebelde por natureza, contra a regularidade das coisas. Nós só existimos porque "balançamos o barco". Dói como o inferno, mas é a nossa natureza ser contrários a natureza.

Tudo se aquietará, mas nada será como antes. E a mudança traz medo, que é o sentimento básico por detrás do desejo por ordem.

Há hora para tudo. Essa é talvez uma hora de escuridão e de tempestade. Uma hora de incertezas e de tempo fluido. A impressão doida e doída de que o furacão talvez esteja ainda no olho e sei-lá-o-que nos espreita a espera de mais um poderoso e doloroso golpe.

Por dentro do emaranhado de neurônios e hormônios, demônios dançam na confusão de um monte de sentidos e o mundo interno está de ponta-cabeça invertida e ao contrário.

Mas lá fora, o sol ainda brilha, o vento balança nas árvores, a bolsa de valores oscila, “os homens fazem guerra e Mona Lisa continua sorrindo”.

É estranho...
Mas o caos está só nas entranhas do homem.

Diagnose

Multiplicamos doenças por prazer,
Inventamos uma necessidade horrível, uma dúvida vergonhosa,
Regalamo-nos na licenciosidade, nutrimo-nos da noite,
Criamos balbúrdia no íntimo – e não saímos.
Por que sairíamos? 

Despojado de sutis complicações,

Quem poderia encarar o Sol senão com temor?
Este é o nosso refúgio contra a contemplação,
Nosso único refúgio contra o simples e o claro.

Quem irá sair rastejando de sob o escuro
Para ficar indefeso no ar ensolarado?
Não há terror da obliqüidade tão certo
Quanto o mais notável terror da desesperança
De saber como é simples a nossa mais profunda necessidade,
Como é intensa, e como é impossível satisfazê-la.


Marcia Lee Anderson


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Raciologicando ao quadrado

Tinha sonhos aos cacos,
Pela ladeira ingrime por onde o bom senso escorria junto com pensamentos...
A natureza de um homem o trai tanto quanto mais ele luta contra ela.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

sábado, 14 de setembro de 2013

Ainda sobre a Rua da Bahia


...E foi nos perigosos cantos escuros da Rua da Bahia, cintilados pelas sombras da noite e povoados por almas perdidas, que em noite escura tive uma iluminação: 

A vida e a morte dançam juntas, e a primeira dança ainda mais belamente quando na presença da segunda;

A percepção disso certamente mexeu e retorceu os meus sistemas nervoso, sanguíneo, filosófico, poético e outros tantos sistemas para os quais ainda não há nome. 
Certas coisas não têm mesmo de ter nome.

Fui para casa meio a dançar, no gozo dessa perfeição anônima.

Eu sou um meio-meta-pseudo-qualquer-coisa-de-poesia.
E se não tenho uma definição para mim mesmo, como posso significar o que é indefinível?

Há sensações que a palavra não alcança e se alcançar, mataria a sensação pela frieza de uma palavra que se pretende calorosa.

Afinal, ha mais do que poeira e cansaço correndo pelas minhas veias.
É outra percepção que me deixa atordoado.

Há, nos hiatos abismais da minha memória, o que a poesia não é forte o bastante e nem profunda o suficiente para dar forma.
...
É só e apenas que certas coisas são perfeitas... 
E têm uma perfeição que lhe é própria, fugindo a qualquer nomenclatura.
Eu sinto...

E o resto é poeira...

domingo, 25 de agosto de 2013

Fumar aos Quarenta



...ainda não entendi....Porque diabos você quer começar a fumar agora?

Ora, por que! Porque, eu posso, porque não tem lei me proibindo de fazê-lo, porque todo mundo acha que não devo... Tenho um porrilhão de motivos, mas a verdade é que eu quero. Simples assim. E se não tem lei em contrário, o meu querer e o meu não-querer tem de ser razão o bastante para que eu faça ou deixe de fazer qualquer coisa....

Mas você sabe que isso vai te ferrar, né? Vai ficar com os dentes amarelados, o cabelo e a roupas fedendo e nem vai conseguir subir uma escada sem por os bofes pra fora!

...E blá-blá-blá! Você se esqueceu de falar do câncer de pulmão.

Tem isso também! E não é coisa que se despreze!

Bom, eu não ligo de não conseguir subir escadas (pra isso existem os elevadores) e meus dentes (caso não tenha notado) já são amarelos (e sem o “benefício” do fumo) e quanto ao fedor... Ah, eu vou fumar charutos! Charutos não fedem tanto assim! E o cheiro, dizem, é até gostoso...

Nem! Fala só por você!

O Freud fumava charutos...

E morreu de câncer na boca!

Com 83 anos, caramba! Ele tinha de morrer de alguma coisa! Teve o prazer de fumar por décadas e depois morreu. Acha que ele devia viver pra sempre?

Não. Só acho que é um jeito bem desagradável de se morrer...

Rá! Você fala como se existisse um jeito agradável de se morrer.

Não, mas tem jeitos e jeitos... E ainda acho que fumar é má ideia.

Bom, acho um tanto tolo esse negócio de viver em função de como se vai morrer, pra não falar que é paradoxal e um tanto... Religioso...
Fumar talvez seja má idéia, mas se te preocupa que eu vá morrer, advirto que fumando ou não fumando, vou morrer de qualquer jeito.

Você vai fazer merda!

Vou. Mas eu nunca fiz merda na vida. E sou de opinião que quem nunca fez merda na vida, teve muita merda e pouca vida...Ou uma vida de merda, se me permite dize-lo.

Então, se está mesmo tão decidido a fazer alguma asneira, porque não faz uma tatuagem ou foge com um circo?

E desde quando fazer tatuagens é asneira? E qual foi a ultima vez que você viu um circo que aceite gente sem talento para o picadeiro? Cara, você anda vendo TV demais...

Certo, mas é que, fumar, sabendo que é besteira, me parece um tanto irresponsável.

(...)

Quero dizer, a gente faz merda na vida, mas geralmente faz inconscientemente.

Está me dizendo então que uma idiotice é legitima quando feita inconscientemente?

Ei, não coloca palavras na minha boca! Não vem com essa de psicologia reversa barata para justificar o fato de que está para fazer uma estupidez!

Não estou justificando nada. Só estou me dando o direito de arruinar minha saúde. Mas pensa nisso: Dizem que se você começar a fumar com doze anos de idade, aos quarenta vai ter, provavelmente, um monte de problemas de saúde, né?

É o que dizem...

Pois então! Já tenho quarenta, o que significa que vou começar a ter problemas lá pela casa dos setenta anos. É a época em que qualquer um começa a ter problemas de saúde, fumando ou não!

Não acredito!!

O que?

Essa é a coisa mais estupidamente maniqueísta que você já disse!

Diz isso porque me ouviu falar relativamente pouco... Mas não negue a lógica de um pensamento apenas porque ele te desagrada.

Isso não tem lógica nenhuma! E você é um idiota!

Talvez, mas sou um idiota bastante ciente de que se é idiota, o que não se pode dizer da maioria dos idiotas.

Bem, se quer que eu diga, sim, isso certamente conta a seu favor.

Autorização pra fumar então, "majestade"?

Que se dane! O funeral é seu!

O pulmão também. E olha lá... A tabacaria fica ali, perto da redação do "Estado de Minas".

(...)

Quié?!!

Tem um estúdio de tatuagem lá no "Edifício Maleta que"...





sábado, 18 de maio de 2013

Umas Coisas que Talvez sejam Uma



Olha lá pra trás...!
Foi uma tediosa e longa estrada caminhada e no decurso dela, mais de uma vez você confirmou a sua inabilidade para se passar por gente.
Porque diabos ser gente é tão complicado?!
Você admira as feministas, os machistas, os idealistas, os românticos e todos os que tomaram um partido ou outro e todo e qualquer um que levante uma bandeira e diga com orgulho "EU SOU!, porque deve ser algo  extraordinário pensar que se é uma coisa só.
Imagina isso!
Acordar pela manhã e reconhecer aquele corpo como o seu, sem adendos, sem ausências,  sem fragilidades acrescentadas ou enrijecimentos súbitos....! Delicia isso de ser uma coisa só!
Bem, deve ser...

Dias desses você olhou-se ao espelho e viu um par de olhos azuis te olhando de volta daquele reflexo do seu rosto afroamerindio confuso, e ao fim da tarde, o castanho do seu espírito saltou de volta para a sua íris e você já não tinha mais os cabelos verdes de seis semanas atrás.

Ah...Ser uma coisa só!

Hoje, é um dia de merda.
Jesus, que inveja dos que creem em qualquer coisa!
Ou dos que não acreditam em nada ou de qualquer um que possa viver sem arrependimentos ou sem a consciência de motivos para se arrepender.
Que inveja dos que tem certeza de qualquer coisa e enfrentam a vida com o mesmo desdém com que você tromba na morte sempre a espreita pelas esquinas escuras de BH.
Que inveja dos que não tem inveja e dos que podem fingir não ter e de qualquer um que, esteja onde estiver, pode abraçar a si mesmo com o afago de auto-enganos doces e pensamentos de poder e independência  enquanto sonha ser abraçado por outro...
Maravilhoso!

Se você rezasse, mesmo sem fé, algum deus ouviria?
Seria algo então, encher o saco dos deuses com orações sem fé, como eles enchem a sua cabeça de sonhos quebradiços ao menor sopro de realidade e seu coração de esperanças que se despedaçam saltando do quarto andar de qualquer repartição publica onde há formulários e mais formulários a preencher.
Será que vai ter de preencher questionários e reconhecer firma para poder descansar em paz no inferno?
E enquanto todo mundo parece te dizer que deve ser deste ou daquele modo e tomar esta ou aquela direção, você pensa, por que, meu deus, é tão complicado ser gente?

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Daí aquelas gotas de sangue na calçada da Avenida dos Andradas.
O que chamou a atenção?
Todo mundo passa por gotas ou rios de sangue em sarjetas mal frequentadas e dão menos atenção a isso do que a pessoas caídas em meio ao lixo e em meio ao luxo dessa selva de concreto BH.
O odor acre de urina velha e vômito e lixo...Quem dirá que é  mais ou menos nauseante do que o daquelas lojas perfumadas dos shoppings repletas de vendedores ensabonetados?

Talvez algo no modo como as gotas caíram nos paralelepípedos lembrasse a configuração de umas estrelas que lhe custaram uma dor no pescoço, quando em noites atrás e a frente, você ficou de boca aberta olhando com seus olhos invejosos para aquele mar de luzes inalcançáveis.


Não, não foi isso.
Aquilo não eram estrelas na calçada (e que sabe você da configuração de estrelas?).
Era sangue de alguém, uma marca de alguma dor infligida. Alguém sofreu ali horas antes e deixou tatuado no chão a assinatura de um momento de vida e de morte.
"Sangue de mendigo ou maloqueiro", diriam uns, e "essa gente nunca morre direito", diria Paulo Honório do seu São Bernardo amarelado. E quem vive ou morre direito afinal?

E um pouco mais adiante, uma alma gigantesca forrou uma daquelas horríveis bolas de concreto sob o viaduto Santa Tereza de papel laminado dourado,  e quem se deteve para olhar, mesmo tendo ignorado o sangue uns metros antes, teve um pequeno momento de sonho que não se despedaçou.
Talvez não seja um dia de merda afinal...
Talvez seja só um dia...



Obs; Fotos tiradas com pressa e da câmera ruim de um celular ruim na mão de um "fotógrafo" ruim às 07:42   de uma manhã de 17/05/2013.
Deus, eu detesto e amo Belo Horizonte!

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Ainda sobre relógios e sobre o que eu não compreendo...





Acho que talvez uma ampulheta meça melhor a passagem dessa coisa fluida que é o tempo do que qualquer relógio, exceto talvez o relógio de sol. Mesmo que um relógio de corda, habilidosamente sacado do bolso orgulhoso de quem ostenta um mimo desses tenha certo charme ou que a tecnologia de relógios digitais tire o fôlego por sua versatilidade, ainda penso nos finos grãos de areia dourada, caindo mais rápidos do que segundos frios pela cintura voluptuosa de uma ampulheta tenham uma carga de tempo que é quase palpável...

É isso ou eu, pelo meu gosto por coisas arcaicas, sou mesmo “jurássico” , como na definição graciosa de uma afilhada que gosta de me chamar a atenção para o fato de que sou um "velho retrógrado". Como se eu pudesse por um momento sequer ignorar isso...
Só para constar, ela está errada, porque estou certo de que sou pré-crambriano e ela errou por um  bilhão de anos ou dois.
Coisa de pouca monta.

E enquanto a areia caia pela cintura da ampulheta, fiquei distraído ao sol observando crianças montarem um castelo de cartas e depois derrubá-lo. Ficaram nisso por muito tempo e admirei-me que ainda continuassem crianças depois de tanto tempo fazendo e desmontando castelos de cartas. Eu sei que meus cabelos embranqueceram muito naquele tempo em que a areia caiu e castelos de carta se erguiam e eram derrubados e em volta, no mundo para alem daquele playground, coisas grandes aconteciam, guerras e revoluções e vida e morte, mas sinceramente? !?
Duvido que entre todo aquele espetáculo humano algo fosse mais fascinante do que a alegria meio louca de crianças a montar e desmontar castelos de cartas.

Pensei em Sísifo e sua pedra e acho que ele certamente teria aprendido algo com aquelas crianças.
Então compreendi (novamente tardiamente como é da minha natureza) que a alegria daquele ato de desmontar para depois montar é algo que os adultos tentam reviver, em conversões espirituais ou de caráter, como se fosse possível desfazer a si próprio e se remontar novamente em unidade renovada com  os cacos que fizemos de nós mesmos e daqueles sonhos ridículos que nos venderam como nossos.

Pensei em todo o discurso grandioso de gente que em certo dia resolve que vai ser diferente, que vai mudar de vida e que vai se erguer das cinzas como uma fênix e sai por aí, andando em direção contrária a do mundo achando que está fazendo grande coisa, quando nem percebe que a direção que tomou agora, ainda é referenciada pelo mundo e não pelo próprio desejo.
Talvez castelos de carta sejam infinitamente mais honestos.

A vida cansa. E é tediosa e chata.
E  mente maravilhosamente bem quem diz para si mesmo que ela é uma sucessão de folguedos e alegrias. Geralmente é o tipo de gente que acorda quase sempre de ressaca etílica e bebe mais, para não ter de lidar com a ressaca moral que certamente vai se somar a dor de cabeça e estômago ruim para atormentá-lo.

Eu?
Sou um velho cansado, cansado de aprender de velhos cansados o que é no fim, apenas mais e mais cansaço.
Melhor aprender das crianças, porque estas enquanto não cresceram, não esqueceram completamente  o que é ser verdadeiramente  humano.

E enquanto “convicção” não for um artigo vendável e comprável em farmácias e estabelecimentos afins (aparentemente o é em igrejas, partidos políticos e movimentos ideológicos, mas já falei demais disso e me cansei desta vereda), permaneço um ateu da vida eminentemente prazerosa e um apóstata do deus felicidade, cujo culto absurdo transforma crianças alegres a desmontar castelos de carta em adultos decepcionados consigo mesmos, tentando todo dia desmontar a si próprios e com vergonha do que são.

A areia cai e as crianças brincam. Essa é toda a sabedoria que existe no mundo.

E para encerrar a minha perplexidade, acho que caiu um Saara de areia por aquela ampulheta enquanto eu envelhecia olhando as crianças.

Levantei-me com dificuldade por ficar tempo demais na mesma posição. Olhei para o mundo e percebi que preciso me atualizar, porque até onde me lembrava, o Brasil era um país laico, homofobia e racismo ou preconceitos religiosos eram crimes morais (se ainda não legais) velados e não escancarados, um beijo (entre pessoas do mesmo sexo ou não) era uma manifestação de desejo e/ou de amor e não uma arma política, “vadia” era um termo insultuoso para as mulheres, tal como "ladrão", "malandro" ou "safado" era para os homens; honra era uma bússola para a conduta de pessoas fortes e não uma palavra meio esquecida num dicionário ou um atributo de que se envergonhar; onomatopeia musical (do tipo; Lá-ri-lá-lá ou Tan-tan-ran ou tê-rê-tê-tê) era apenas um recurso para quando se esquecia a letra das músicas e não  A letra da “música” em si e a sociedade caminhava para uma evolução de valores e liberdades e não para uma involução a cata de hedonismo. Oh e a lista segue!
E quando fiquei na ponta dos pés, tentando divisar mais ao longe, vi que o oceano de absurdos não parecia ter fim.
E eu sequer havia compreendido a marola na beira da praia.

“Não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo.”

Clarice Lispector

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