Para que o mundo exista, existimos.Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
(Fernando Pessoa)
Pois seja.
Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.
O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.
Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e… nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.
Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim… que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.
Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.
Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?
Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.
O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.
Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.
Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.
Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.
Cassiano Ricardo