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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Amici, ad Qui Venisti?


E aquilo chegou-se deslizando da escuridão da noite para a luz das labaredas na fogueira.
Não desrespeitou meu silêncio com saudações vazias e retribui-lhe a gentileza calando-me por meu turno. Claro que não pediu licença e nem era necessário. Eu era dono das cinzas e da madeira que crepitava, mas não do fogo, porque o fogo não pertence a ninguém.

Acocorou-se de frente e ali deixou-se ficar como eu, absorvido pela dança das chamas.
Era uma sombra, ou coisa que mais familiar seria se eu a chamasse assim. Não sabia o que era e nem parecia me importar ou se importar. Compartilhávamos o fogo, mas não a presença um do outro. Éramos então duas sombras gentis, zelando pela solidão um do outro.

Não sei se tinha olhos para ver ou um rosto que fosse visto, mas era uma sombra. De algo ou alguém...
Era noite escura  e ventava muito naquele deserto dos sentidos.  Seja lá o que isso for...
Uma parede de breu translucida se erguia alguns metros além do alcance do dourado das chamas, o deserto e o mundo se resumiam a aquele círculo e aquela sombra pareceu um pedaço da noite infinita a se desgarrar e vir aquecer-se, embora não fizesse frio.  

Não era do tipo supersticioso e não havia motivo para temer o que quer que fosse que viesse noite adentro. Mas algo naquela sombra solitária atraída pela fogueira de um vagabundo dos ermos  me inquietava.
Veio na direção contraria a que eu seguia, muito embora eu não tivesse direção alguma a seguir, o que é a coisa mais bela em um deserto – Não ter caminhos...

Mas eu sentia, muito mais do que sabia, que aquela sombra vinha na não-direção contrária, e eu pisaria nas pegadas dela voltando e ela pisaria em minhas pegadas indo.

Talvez...
Talvez fosse eu voltando de lá, daquele lugar para onde eu não ia seguindo sem querer chegar a lugar algum enquanto olhava para o céu. Talvez aquela sombra agachada perto do fogo olhando para o infinito das chamas fosse eu, mais velho e imensamente mais sábio. Ou pelo menos, menos miseravelmente  tolo. 

Talvez me olhasse dali do outro lado da fogueira como sombra também... Uma sombra da sua juventude, da sua infância, do caminhante sem rumo que foi e que muitos anos antes se sentou numa caverna meio perdida num deserto dos sentidos, ponderando sobre a natureza de uma sombra.

Talvez me olhasse com compaixão ou com pesar, talvez me invejasse a pele ainda virgem das muitas cicatrizes que levava e a alma ainda carregada de anseios...

E eu querendo saber se ele havia encontrado um pássaro pintado naquele céu infinito acima do deserto.
Mas se fosse eu, claro que não me diria.

Eu jamais pouparia a mim mesmo o esmo em que vagava e a jornada, e a solidão das dunas e a espreita de Graograman e o vento quente no rosto e a sede de água e de mim mesmo...

Não. Estava decidido a, caso encontrasse a mim mesmo em algum momento da ida ou da volta, não faria nada a não ser partilhar um silêncio a volta de uma fogueira...

E a madrugada rompeu  a escuridão e tão silenciosamente quanto veio, aquilo foi para fora da caverna, das minhas vistas mas não dos meus pensamentos, enquanto eu caminhava pela paisagem árida saudando o sol e o vento maravilhoso e sem perceber, pisava os passos  que vinham de lá, de além das dunas, marcados na areia colorida....

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