Eu sou o que não sou. E frequentemente, consigo não ser
o que sou com maior zelo do que o ser.
E sendo, não posso ser outra coisa que não esta
dialética e esse cio entre o ser e o não ser.
Os meus sentidos um dia talvez – não sei por qual
sortilégio – venham a calar
E eu, com outras percepções, de outros modos venha a
saber
Que na vida não tenho amado senão a fantasmas vivos
Sendo eu próprio e este espelho,
E estas rugas e estes olhos no espelho que me fitam
com rancor,
Um fantasma do amor que deixei de legar a mim mesmo
Enquanto amava fantasmas vivos...
Penso que eu realmente deveria fumar estes cigarros
Que deixo arderem como incenso no cinzeiro apenas
por gostar do cheiro de decadência
Da fumaça que se desprende da seda e dança até o teto.
Penso que eu realmente deveria parar de emprestar
livros e sonhos.
As pessoas nunca os devolvem e eu me encontro pelos
corredores desprovido de tudo,
Com a estante e a cabeça repletas de fantasmas
literários e oníricos.
Um vazio paradoxalmente repleto de ausências.
Se eu virasse agora aquela esquina onde há um minuto
Garotos barulhentos perseguiam um cão vadio,
E pegasse depois de umas curvas e algumas esquinas outras,
um caminho para o deserto,
Talvez perdesse essa sensação de alheamento
Com essa casa e este espelho,
Com esse silêncio barulhento em meu sangue
E essas gargalhadas que vem não sei de onde,
E essa gente lá fora e essa inquietação aqui dentro
E esse desespero branco e essa preguiça tardia e
esse cansaço que me corrói as horas
E as entranhas...
Há grandes questões no mundo,
Guerras e estrelas a
explodir e a nascer nos remotos do céu e da terra.
Ali é só uma esquina mal iluminada.
Deus e o Diabo devem estar neste momento
ocupadíssimos;
Em batalha pala alma de algum santo, decidindo o
destino de uma nação, envolvidos demais
nas importâncias do mundo,
Para olharem para uma simples esquina.
Se eu virar ali sem que vejam, escapo para sempre
das grandes questões!
Da metafísica!
Pensando nisso, deitei escadas abaixo o meu corpo em
fuga dos meus pensamentos, antes mesmo de pensar no absurdo de empreender tal
fuga.
Mas antes de virar a esquina, eis que me antagoniza
um vagabundo.
Era um vagabundo parado entre eu e a esquina,
olhando-me em desafio.
Talvez me confundisse sabe-se lá com que objeto do
seu mal querer, mas era um vadio.
Chamo-o assim, porque o odeio.
Insulto-o porque o invejo.
Está ali, sem camisas e sem pudores, exibindo o
torso nu no azul da tarde.
Gozando, por entre os rotos que parcamente lhe
cobrem as partes, o estômago semi-vazio e a imundice de sua pele,
A gloria de
não ser eu.
Que direito esse maldito tem de não ser eu?
Que direito tem de estar ali fora das grandes
questões do universo
E de ser peça ausente do xadrez de Deus e do Diabo?
Odiei-o! Odiei-o pela sua liberdade de não ser eu...
E por impor, como baluarte, sua liberdade entre mim e
a esquina por onde eu fugiria.
Avaliei a coisa pela matemática enquanto retribuía o
desafio.
Os números me desfavoreciam...
Era vinte quilos mais pesado, vinte centímetros mais
alto e vinte anos mais jovem do que eu.
Levava na cara atrevida e nas unhas sujas a malicia das ruas que em
tempo e por entre feras irmãs aprendera,
E que meus diplomas e leituras e noites em claro
jamais me ensinariam.
Como ser fera livre.
Levava nos olhos a leveza da vadiagem desprovida de
tudo.
Ele me bateria, estou certo e isso me fazia estar
feliz com a felicidade dos desgraçados.
Pois por vezes um soco a esmagar as
bochechas e dentes e ossos – é tanta vida a se desprender de um gesto – aquece
a alma tal qual um beijo apaixonado.
Havia muito eu não sabia o que eram ambas essas
coisas.
E por tudo o que estava em meu desfavor, decidi que
definitivamente o atacaria.
E por deus, se não desembargasse aquela esquina, eu
o reduziria a cinzas!
Que espetáculo seria!
A minha respeitabilidade engalfinhada com a livre
mendicância dele!
Sim, era eu e era ele que não era eu e lutaríamos!
Tal era o meu ódio que, tinha certeza, o esmagaria contra a sarjeta onde mendigava o
seu pão.
Mas antes que eu travasse peleja mortal, uma nuvem
cruza o céu e Deus e o Diabo olham.
Eis que passa um carro e um homem atira uma moeda,
E meu inimigo, rapidamente esquecido de mim, corre
por entre os carros, arrisca a vida
A cata de uma moeda de pouco valor.
Li em seus olhos o desespero para buscá-la e ao que ela traria e apiedando-me dele, amei-o.
A fúria que me animava os músculos se esvaiu.
Oh, homem desgraçado! É meu irmão!
Ele cata moedas por entre carros e eu metafísicas
nas vilezas da vida.
Não é melhor do que eu, apenas tem amos em menor
número.
É tão rico de necessitar de tão pouco, que nem me
permite odiá-lo.
De volta ao meu quarto e muito depois, passado o meu
sonho de mutuo extermínio, lamento em
silêncio o olhar de Deus e do Diabo
Para aquela esquina onde um homem agora dormia sobre
trapos
Em sono menos perturbado do que eu em sedas e
travesseiros a lavanda.
Ele só quer pão e álcool e eu quero o impossível não
querer, mas...
Espera...!
Há aqui nesta mesa pão em demasia, repleto de bolor.
A metafísica não me permite comer.
Há aqui neste armário e sob esta cômoda, vinho
mais velho do que meu cansaço.
A moral não me permite beber.
Do que ele necessita, o pão para saciar o corpo, o
álcool para acalmar a alma,
Tenho em abundância, sem no entanto ter calma e sem
saciedade.
Deveria ter arrebatado-lhe a moeda como me furtou a
fuga!
Por que necessitaria de algo mais do que já tinha?
Era livre! Não era eu...