"Eu não sei quem você é. Por favor, acredite. Não há como convencê-lo de que isto não é mais um truque deles.
Mas não importa.
Eu sou eu e não sei quem é você,
Mas eu te amo.
Tenho um lápis, bem pequenininho que eles não encontraram. Escondi dentro de mim. Eu sou uma mulher.
Talvez não possa escrever de novo, por isso essa será uma carta muito longa sobre minha vida. É a única autobiografia que vou escrever e, oh, Deus, estou escrevendo num papel higiênico."
"Eu nasci em 1957. Chovia um bocado. Passei no teste de avaliação e fui pra uma escola feminina.
Eu queria ser atriz.
Conheci minha primeira namorada na escola.
Seu nome era Sara. Tinha quatorze anos e eu quinze. Nós duas estávamos na classe da Srta. Watson.
As mãos dela...Elas eram lindas!
Na aula de biologia, contemplando um feto de coelho num jarro de picles, fiquei ouvindo a Sra. Hird dizer que isso era uma fase da adolescência, que as pessoas superam.
A Sara superou.
Eu não."
"Em 1967 parei de fingir e levei uma namorada, Christine, pra conhecer os meus pais. Uma semana depois fui pra Londres e me matriculei na Escola Dramática. Mamãe disse que eu parti o coração dela...
Mas minha integridade era mais importante. Isso é egoísmo?
Pode não ser muito, mas é tudo o que nos resta aqui.
São os nossos últimos centímetros, mas neles, nós somos livres."
"Londres...
Eu era feliz em Londres.
Em 1981 interpretei Dandini em “Cinderela”, meu primeiro trabalho profissional.
O mundo era estranho, farfalhante e conturbado, com platéias invisíveis por trás das luzes quentes e ofegantes. Glamour..."
"Era excitante e, ao mesmo tempo, solitário...
Eu ia ao Gatewars ou outras casas noturnas, mas eu era bem retraída e não me misturava facilmente. Eu via de tudo, mas nunca me senti confortável. Lá havia muitos que só queriam ser gays. Era a vida deles. Sua ambição. Era só disso que falavam e eu queria mais do que aquilo..."
"O trabalho evoluiu. Consegui pequenos papeis em alguns filmes, depois outros maiores.
Em 1986 participei do “Dunas de Sal”. Ganhou todos os prêmios, mas não o público.
Conheci Ruth trabalhando nele. Fomos morar juntas no dia dos namorados. Ela me mandava rosas e, Deus, nós tínhamos tanto...
Nós nos amávamos e foram os três melhores anos de minha vida."
"Em 1988 veio a guerra.
Depois disso não houve mais rosas.
Para ninguém."
"Em 1992, depois que tomaram o poder, começaram a prender os homossexuais. Levaram Ruth enquanto ela procurava comida. Porque eles têm tanto medo de nós?
Queimaram Ruth com pontas de cigarro e forçaram a coitada a dar nomes. Ela assinou uma declaração de que foi seduzida por mim. Eu não a culpei. Eu amava Ruth, não podia culpá-la...
Mas ela sim.
Ruth se matou em sua cela. Ela não pôde viver depois de me trair. Após ceder aqueles últimos centímetros.
Oh, Ruth..."
"Eles vieram me buscar. Disseram que todos os meus filmes seriam queimados
Rasparam meu cabelo, meteram minha cabeça numa privada e fizeram piadas sobre lésbicas.
Fui trazida para cá e drogada. Não sinto mais minha língua e nem posso falar.
A outra lésbica daqui, Rita, morreu duas semanas atrás e acho que vou morrer logo também.
É estranho que minha vida possa acabar neste lugar horrível. Mas por três anos eu recebi rosas e não tive de prestar contas a ninguém.
Eu vou morrer aqui. Cada centímetro de mim morrerá.
Exceto um."
"Um só.
É pequeno e frágil e é a única coisa do mundo que ainda vale a pena se ter.
Não devemos jamais perdê-lo, vendê-lo ou entregá-lo.
Não podemos deixar que alguém tire de nós.
Não sei quem você é. Se é homem ou mulher.
Talvez eu nunca o veja, nem te abrace, nem bebamos juntos...
...Mas eu te amo.
Espero que consiga fugir.
Espero que o mundo mude, que as coisas melhorem e que, um dia, as rosas voltem.
Queria muito poder te beijar..."
Valerie
Alan Moore em V, de Vingança