Talvez fosse apenas um ruído. Mas para ouvidos treinados bem poderia ser um Dó Maior ou um Si Bemol. Ouvidos atentos e uma batuta poderiam transformá-lo num Adágio sustenido ou organizar um conjunto deles numa sonata. E embora eu sentisse música até no vento passando pela fresta da janela, nunca achei importante ou soube diferenciar o que era Clássico do que era Barroco ou mesmo uma Marchinha simples do que era Samba de Raiz. E como também tinha uma voz desagradavelmente anasalada, deixei de lado minhas aspirações musicais e me voltei para as cores.
Talvez fosse só uma mancha na tela, mas para olhos atentos bem poderia ser uma possibilidade. Bastava um pouco de boa imaginação junto a um bom pincel e mão hábil que o empunhasse para moldar um sonho na tinta. Como estava sempre desprovido dos dois últimos itens, abandonei desde aí minhas pretensões às artes visuais.
Aprendi a ler e o mundo subitamente ficou enorme.
E então me tornei cego e surdo para tudo o que não estivesse em letras, em linhas e nas entrelinhas. Não estou falando exclusivamente de livros...O caso é que eu não vejo e nem ouço realmente nada. Eu leio tudo. Até mesmo aquilo que não está escrito (e isso curiosamente não permite ser ignorado, de modo que embora não queira, a isso tenho lido mais atentamente). Sons são palavras. Imagens também. Mas para lê-las corretamente é necessário se submeter a algo no som e na imagem que transcende a sua superficialidade... Isso também é ser anacrônico.
Que pena... Talvez eu não me tornasse um Renoir ou um Monet, ou mesmo chegasse próximo da virtude de um Eric Satie ou Villa Lobos, mas é bem possível que eu conseguisse encantar os olhos das pessoas com uma tela colorida ou alegrar uma festinha tocando violão, ao invés de perturbar-lhes os pensamentos obrigando-as a pensar naquilo que não querem. Em vez de me concentrar na respiração entrecortada do flautista por entre as notas e tentar adivinhar se era homem ou mulher, jovem ou idoso a tocar uma ária ou de chamar a atenção para a densidade de um verso numa musica que todo mundo quer simplesmente dançar.
Era só um moleque e fiquei perplexo quando numa festinha, vi um bando de gente dançar ao som destes versos:
"Tudo o que viceja também pode agonizar,
e perder seu brilho em poucas semanas...
E não podemos evitar que a vida trabalhe com seu relógio invisível
Tirando o tempo de tudo o que é perecível..."
Nunca entendi como alguém pode dançar ao som de algo dessa profundidade. Ficar paralisado, absorvendo o impacto daquela letra ao invés de ir dançar como todo mundo acabou com a festa para mim. Ao longo da vida, não foram poucas as festas que arruinei para mim mesmo por causa dessa mesma perplexidade. Para aqueles que seguem a filosofia de "a vida é uma festa", talvez eu tenha arruinado a minha vida.
É certo que eu teria me dado melhor com as meninas quando eu era garoto, se lhes elogiasse os cabelos sedosos e as curvas sinuosas em vez de ficar perguntando o que era aquela sombra que se esgueirava atrás do olhar delas e que elas tentavam disfarçar com sorrisos forçados... Se aprovasse e disse como são lindas todas as coisas que falavam, ao invés de realmente prestar atenção naquilo que diziam sem falar.
Mas pareço ter nascido com o dom de desmanchar a folia dos momentos em que eu deveria simplesmente deixar a maré da superficialidade me levar.
Agora, sem a virtude de um bom pintor ou musicista, lastimo ter de admitir que apesar de saber ler mesmo o que não está escrito, tampouco tenho o dom para as palavras e acabo por perceber que não consigo de fato me comunicar com as pessoas, porque embora seja bom em ler, sou péssimo em escrever, ou seja, é uma comunicação de uma via só. Um monólogo apagado onde deveria arder um diálogo. É mais ou menos como saber tocar piano, mas não ter dedos.
Acabo falando o que não devo, a coisa errada, na hora errada, do jeito mais errado possível. Apenas com a intenção certa. Com malditas boas intenções, que são as piores. E se de “boas intenções o inferno está cheio”, fico me perguntando para onde vão afinal as más intenções...
Ou faço pior ainda, nos momentos em que deixo de ser Eu e tento agir como Nós. Aí acabo agindo como um touro bravo em loja de porcelana. Nesses momentos de ausência do Eu, acrescento analfabetismo intelectual a minha surdes e cegueira emocional.
É comum quando alguém conhece uma pessoa surda e nunca teve contato com alguém nessa condição, a pessoa começar a usar mímica ou mesmo falar aos gritos (como se o outro fosse ouvir ou entender). A sensação é parecida. Ele é surdo, mas é você quem não consegue se comunicar.
É você, quem não consegue se salvar.
Em alguns momentos... Para ser honesto, em momentos mais freqüentes do que gosto de admitir, sou completamente cego, surdo, iletrado e estúpido.
E o inferno sorri...