Talvez ele...
Senhor idoso em terno caro e bem cortado e gravata. Um tanto calvo, sem que isso lhe privasse de uma certa exuberância na cabeça. Tinha bigodes grisalhos levemente amarelados pela fumaça de cigarros e sobrancelhas como lagartas sobre os olhos claros. Era a elegância em pessoa. Deixou o carro parado na avenida Afonso Pena e entrou no parque municipal a pé. Tão logo se sentou num banco, foi “assaltado” por uma multidão de gatos do parque. Saudaram-lhe como a um velho amigo, trançando por entre as pernas, dando mordiscadas nos sapatos de couro. A toda essa manifestação de afeto o senhor elegante suportou com estoicismo e simpatia e ouso até afirmar pela recíproca em afagos e coçadelas nos bichanos, que ele sentia prazer na companhia dos gatos.
Gatos são criaturas arredias, desconfiadas por natureza...E os do Parque Municipal tem todos os motivos para serem ainda mais e como eu gosto de qualquer um de quem os gatos gostem, aquele homem conquistou a minha simpatia imediatamente. Um gato castanho subiu-lhe ao ombro, enchendo o terno de pelos. Dois tricolores se revezavam em esfregarem-se nas pernas e muitos outros esperavam a vez ou simplesmente saltavam-lhe ao colo em busca de comida e cumplicidade (duas coisas que conquistam o coração dos bichanos).
O senhor idoso elegantemente vestido tirou dos bolsos o que parecia ser um punhado de ração ou biscoitos. Esparramou aos seus pés e enquanto os gatos se deliciavam, olhava satisfeito para eles. O que quer que fosse estava embalado em papel alumínio (feito em casa) e eu fiquei imaginando aquele senhor, o dia inteiro dentro de algum escritório, participando de reuniões com outros senhores idosos de modos austeros, tendo nos bolsos um pacote de petiscos para os gatos vadios do parque...
Anacrônico...Inadequado...
Muito lírico. Deus! Como eu adoro BH!
Não satisfeito, sacou dos bolsos do terno uma dessas garrafas achatadas que as pessoas costumam usar para guardar bebidas e um pires pequeno. Vodka? Whisky?
Leite!
Passei da curiosidade ao encantamento. Que tipo de ser humano era aquele? Enquanto os gatos tinham o seu festim, fiquei observando melhor aquele homem. Reconheci o cansaço naqueles olhos cor de folha, um cansaço que nada tinha a ver com um estafante dia de trabalho ou com o longo tempo vivido. Ele já tinha aquele cansaço no olhar desde muito jovem (eu tinha certeza disso). Olhava para o nada, concentrando sua atenção em algo que transcendia os gatos, o burburinho da cidade, o parque lotado de gente e a chuva que ameaçava o céu com nuvens espessas. De vez em quando saia de seus devaneios e tornava a encher o pires de leite. Estranho homem de terno, tendo como fio com a realidade a companhia de uma tribo de gatos vadios no Parque municipal.
De olhar perdido no infinito, ficou durante um longo tempo remoendo em secreto os seus pensamentos, tendo o olhar subitamente desanuviado e o rosto iluminado por um sorriso, quando os gatos tendo terminado o seu pequeno banquete, voltaram a prodigar-lhe os seus mais sinceros e efusivos carinhos. Intruso e espectador, senti impulsos de ir até lá e sentar-me no mesmo banco. Eu não diria nada, é claro. Apenas me deixaria ficar por ali tempo o bastante para unir meu silêncio ao dele. Talvez ele percebesse que existe outro Um. Que ele não é o único Eu em meio a uma multidão de “nós”.
Antes porem, que eu fizesse qualquer coisa, começou a chover. Gatos correram, pessoas correram, a cidade correu em busca de abrigo. O homem idoso de bigodes amarelados calmamente recolheu o pires e o papel laminado, rosqueou a garrafa prateada, pôs no bolso do terno, se levantou e andou vagarosamente até o carro, como se não estive caindo um dilúvio do céu nublado. Eu estava meio hipnotizado pela cena e só percebi que estava igualmente encharcado muito depois que o carro dele desapareceu subindo a Av. João Pinheiro.
Talvez ela...
Menina bem jovem. Adolescente com pele muito clarinha de quem nunca pegava sol ou poeira. Tinha toda a aparência de quem jamais andou mais do que uns poucos quarteirões a pé. Estava a minha frente na fila do supermercado. Bonitinha, embora eu não esteja muito certo de saber mais avaliar a beleza dessa faixa etária. Se é que algum dia eu soube. Havia algo nos seus modos que a faziam destacar na paisagem. Uma leveza estranha, quase surreal. A fila estava longa, final de sexta feira, gente com carrinho lotado de compras a nossa frente, irritados com a demora no atendimento...E ela a placidez em pessoa. Cantarolava baixinho numa língua cheia de “R” que eu não conseguia discernir (gaélico?) uma musica que era...não sei...Talvez fria demais para aquela voz de Contralto.
Vestido de algodão cinza e uma jaqueta jeans que já saiu de moda quando eu era garoto. Tênis de tecido e cadarços e um chapéu no mínimo estranho...Parecendo chapéu de pesca (mas que diabos eu entendo de chapéus ou de moda?). Tenho certeza de que aquela roupa ficaria horrível em qualquer uma que não fosse ela. Nela, ficava...encantador. Debaixo da axila tinha um livro que com muito esforço e indiscrição consegui descobrir o título: “Origens do Totalitarismo – Hannah Arendt”. Olhei para aquele rosto pálido e um tanto infantil e fiquei imaginando porque diabos uma pós-púbere estaria lendo aquele livro.
Comprava uma beberagem feita de mamão e laranja. Estava na fila há vinte minutos para comprar uma coisa tão... Desimportante... Coisa que ela poderia comprar mais rapidamente na padaria do outro lado da rua. Um livro denso numa mão, uma tolice industrializada na outra. Uma quelóide numa das narinas, uma argola pequenina na outra. Paciência e persistência em colisão . Dos cabelos bem penteados se destacava uma trança multicolor e na ponta dessas, uma meia lua sorridente.
Anacrônica...Inadequada.
Pagou com algumas moedas que retirou de uma bolsinha em forma de Mickey Mouse. Contou pacientemente as moedas, ignorando por completo as pessoas na fila, que se impacientavam com aquela sua paciência. Antes de sair ela olhou em minha direção, mas não pude ver realmente o seu olhar, porque seu olhar não estava ali. Este se perdeu muitas milhas atrás de mim. Fui atravessado. Ela parecia olhar o mundo como se esse fosse transparente.
Depois que ela saiu já bebendo a sua compra, acompanhei com o olhar enquanto ela atravessava a rua e parava perto de um moleque de rua que lhe falou. Ela sorriu, olhou diretamente para ele, (depois de ter fuzilado uma fila de “pessoas respeitáveis” com seu olhar de raios x). Apontou na direção da rodoviária. Antes de ir, revirou a bolsa em forma de Mickey Mouse e tirou de lá algumas notas enquanto o moleque de rua, duas vezes mais alto do que ela aproveitava para tomar um pouco da sua bebida. Deu as notas ao moleque, se despediram e ela acenou sorrindo para o garoto. Continuou a tomar a sua bebida e desapareceu virando a esquina com a Rua Goitacazes... Fiquei arrepiado. O que ela tinha acabado de fazer foi perigoso e anti-higiênico, mas lindamente humano.
Na saída do supermercado ainda comprei uma daquelas bebidas que ela tomou.
Horrível! Mas tomei até a caixinha ficar vazia...Persisti até que se tornou a minha bebida favorita.