...E
daí acordei me sentindo estranho. Era, é claro, um sinal de que
estava tudo bem, porque eu sempre acordo me sentindo estranho. Sentia
porém, que algo estava diferente sem que eu soubesse exatamente o
que. Aquela sensação de estranheza era enervante, porque
estou quase sempre com pressa, mesmo em relação a coisas sem
importância, e ter de ficar tentando descobrir percepções por
detrás de sensações que nem consigo definir enquanto o relógio
ditador controla minha vida, aborrece-me em demasia. Queria ao menos
não acordar tão exausto...
As
pessoas dizem, e eu não tenho razão alguma para duvidar delas, que
existe uma coisa chamada “uma boa noite de sono”, mas se isso
realmente existe, o conceito me escapa completamente. Uma noite
repousante, sem ter de lutar durante anos num mundo de pesadelos ou
delirar por milênios num paraíso onírico...Sem acordar com aquela
sensação de que elefantes usaram o seu corpo como pista para dançar
rumba... Deve ser muito estranho... Quase como uma morte temporária,
de uma noite só.
Algo
estava faltando pela manhã, é claro. Algo está sempre faltando e
algo é sempre novo. Acontece quando se é um amontoado de fragmentos
que se ligam e desligam-se uns dos outros a todo o momento. Não
sei se já voltei pra casa alguma vez o mesmo que quando sai. Não
sei se já me levantei o mesmo que quando me deitei na noite
anterior. Não que eu estivesse prestando atenção. Parece-me que
sempre há um acréscimo de alguma coisa, uma impressão talvez, ou
um pensamento que me roeu durante todo o dia, algo que alguém me
disse ou o olhar cruzado com alguém que provavelmente eu nunca mais
verei... Tudo isso me compõe e então nem é necessário que eu
tenha um nome, pois se me denomino de alguma forma, logo no fim do
dia ou dali a um minuto já não mais me reconhecerei por esse
nome...Me chame do que quiser, mas seja rápido em inventar novos
nomes, porque é quase certo de que não vou atender pelo mesmo duas
vezes.
Mas
naquela manhã, dentre o muito que se desprendeu de mim, evadiu-se a
esperança de que eu um dia seria uma unidade, um ser coeso. Não sei
onde deixei...Nunca sei onde ponho minhas coisas. Minha memória
péssima me leva a fazer anotações para me lembrar as coisas e
anotações para lembrar-me de ler as primeiras anotações. Essa
deficiência me fez perder muitas coisas preciosas, mas essa era uma
pela qual eu devia ter tido um zelo maior.
Irremediavelmente
quebrado, já não tinha mais noção das minhas dimensões, mas isso
não chegava ser uma vantagem, porque eu estava tão limitado no
infinito quanto disperso, dançando na ponta de uma agulha com os
anjos vadios.
Não
estou certo de onde a perdi, mas caso alguém a encontre, seria um
gesto de amabilidade pelo qual eu seria muito grato, devolver-me essa
esperança. Não é coisa difícil de reconhecer. Uma coisinha
brilhante e um tanto delicada, quase como uma jóia, mas que nos dias
de hoje não tem muito valor de mercado. Quase ninguém quer ter a
esperança de estar íntegro, de modo que pouco conseguiriam por ela
aqueles que a tentassem vender.
Para
mim, porém, é coisa preciosa e eu estaria disposto a pagar o que
fosse necessário para tê-la novamente. Qualquer coisa que eu
possua, daria em troca de ter novamente essa esperança. Mesmo essa
quimera a que chamam “alma imortal”, porque de que me serve ter
uma alma sem ter esperança para ela?
Queria
terminar isso de modo otimista, mas, lamento, também perdi o
otimismo em alguma esquina da vida, talvez a mesma esquina onde
encontrei este tédio obstinado que me corroi as horas
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