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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Na outra ponta do divã




Talvez no fim, não seja grande coisa meu corpo estar aquecido sob edredons em quarto confortável, se minha alma está enregelada debaixo de uma ponte. 

Oh, que pensamento trágico e gracioso...
Queria ter um verso adequado para rimar com ele e então eu teria poesia e não um exercício fútil de melodrama...

Mas a manhã está boa para pensamentos trágicos e graciosos e me apetece  acrescentar mais uma pedra ao edifício das minhas aspirações natimortas... 

Pensar a vida como uma sucessão de situações venturosas equivale a lançar minha autoestima cambaleante para uma sarjeta qualquer.

Ontem, e antes disso, num tempo que já não levo na consciência, dei-me conta final e tardiamente não entendo em absoluto a dinâmica da vida cotidiana dos semi-deuses que me cercam.

O mistério das relações nesse teatro de bonecos que se chama humanidade (e se Deus é o titereiro supremo ou mais um boneco nas mãos dos bonecos, não sei dizer), não é menos esotérico do que o elixir da vida ou do que a pedra filosofal.

Mas tampouco se pode ser realmente humano sem complicar mais as já complicadas relações.

Ou talvez isso tudo seja apenas fruto de uma má disposição do espírito hoje e semana que vem e no ano passado ou a negação de ter um espírito que vá ter disposição para mais do que se desesperar diante do absurdo.

Talvez seja o nada engolindo novamente o tudo.


E eu, que nada sei sobre nada do que sei, sei que manter elevadas expectativas de mim mesmo, desejando ser moralmente belo e virtuoso, far-me-á ter ódio de mim mesmo por não conseguir jamais viver a altura desses céus onde miro minha ambição por ser.

São essas aspirações que cedo ou tarde me farão acabar com os pulsos sangrando em algum canto escuro ou pendurado numa corda, embora eu prefira pensar que ainda teria forças para fugir para o vazio de modo menos drástico e mais digno.

Nem vou pensar demais nisso, porque a essas alturas, seria uma tragédia se eu me descobrisse súbita e abjetamente religioso.
Deus me livre e me dê antes uma morte honrada!
Mais pensamentos trágicos e graciosos..

Já então, não me podem seduzir ou amedrontar as ameaças do céu e do inferno e estou mais ou menos entregue ao mesmo princípio de caos que orienta o mundo, tanto quanto qualquer um, mas ciente de que estou perdido e de que preciso me orientar.

O caminho do bem não é a minha vereda.
O caminho do mal não é chão onde ponha eu os meus pés trôpegos.

Tenho de me equilibrar sobre a linha fina sobre o abismo, enquanto de ambos os lados, voam pedras sobre mim e urram ventos querendo me derrubar.

Não, este não é definitivamente o meu momento de maior inspiração. 
E o que é que pode inspirar o nada?

Nem é o tédio a corroer as minhas horas, mas o desejo de silêncio que vem da certeza de que lá na outra ponta do divã, dormita o analista e eu falo para os meus próprios ouvidos surdos.


2 comentários:

  1. "Não me diga que eu sou melhor morto, porque o Céu está cheio, e o Inferno não vai me aceitar. Faz pra mim espaço na sua cama."

    Sabe, Luiz, eu tenho uma cabeça que entende a sua, e vice versa. Mas se eu puder ousar com esse palpite (que em nenhum momento será relevante!), eu diria que quase sempre essa vontade de desistir é medo do mundo, porque o conforto presente está mais ao alcance que a mudança necessária pra te saciar a auto exigência. Além do que, o drama é tão irresistível.

    Mas eu sei sim que é mais poesia que todo o resto, e muito detalhada, muito esforçada no vocabulário e, principalmente, muito sua.

    Até.

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