Na corrida entre casa, trabalho e faculdade,
sempre preso a horários (os quais infelizmente quase nunca consigo cumprir),
tenho pouco tempo para erguer os olhos e apreciar as cenas líricas de minha
cidade. Vez por outra, no entanto, percebo (não sou um homem razoável) o incomum, o estranho e o poético
ocorrendo bem no seio da selva de concreto e então (danem-se os horários!) paro
e reflito sobre como o obvio, estando diante dos nossos olhos nos escapa. Fico em transe com cenas assim, como
no dia em que vi um mendigo numa verborragia eloqüente, vociferar para si mesmo
sobre a natureza do universo (Aprendi bastante, porque a loucura ensina tanto ou
mais que a razão).Todo mundo passa por essas cenas e ignora. Imagino que seja
a coisa certa a fazer, ou de outro modo ficaríamos estáticos entre o tanto de
estranheza que existe nesse mundo estranho que é o nosso.
Ontem ( na verdade, isso ocorreu a mais de um ano, mas como é a reedição de um texto antigo, peço que sejam indulgentes para com essa minha incorreção temporal), próximo a plataforma do metrô eu vi dois
monges conversando. Nada de extraordinário, não fosse o fato de que um
envergava um sarongue Budista e o outro trajava o marrom ocre de um
franciscano (talvez, beneditino. Confesso que não sei a diferença, mas o
crucifixo em torno do pescoço deixa inconfundível a marca do catolicismo).
Conversavam animadamente e eu fiquei imediatamente interessado. Ora, a conversa
era amistosa e imaginei que tipos de conversa aqueles dois teriam há uns três
ou quatro séculos atrás. O mais provável é que se matassem numa maré de
intolerância religiosa (e para ser justo com o budista, é possível que a
animosidade partisse do monge “cristão”, porque as religiões orientais, com raras
exceções, costumavam ser bem tolerantes com os outros credos, o mesmo não se pode dizer das nossas).
De todo modo, embora pessoalmente eu não me
interesse por religião alguma, um debate amigável entre aqueles dois seria algo
digno da atenção de qualquer um apaixonado pela psique e por todas as variações
do pensamento humano e a religião é uma das mais importantes dessas variações.
E um debate entre pensamentos místicos tão diferentes imediatamente me
interessou. Tudo bem que é feio ouvir a conversa alheia e eu não fui, é claro,
convidado à condição de platéia. Mas, que diabos, os dois estavam conversando
num lugar publico e geralmente os religiosos esperam mesmo que seus argumentos
sejam ouvidos por quem está próximo! Assim, confortavelmente alicerçado nessa e
em outras desculpas inconscientes para justificar a minha bisbilhotice
(rsrsr) detive meus passos e fiquei perto o bastante para ouvir o que falavam.
Esperava ouvir argumentos e contra-argumentos metafísicos, filosóficos e, ainda que seja Agnóstico, deleitar-me
com o rico e comovente pensamento cristão e o milenar e profundo
ensinamento budista.
Mas aqueles dois me decepcionaram cruelmente! Eu
devia processá-los por “Estelionato Espiritual”. (rsrsrs) Com que então
os dois monges discutiam animadamente sobre FUTEBOL!
Futebol! E nem ao menos eram de times rivais...Se ambos tivessem parado a conversa para assobiar em uníssono para a garota bonita que passou por ali e fizessem elogios grosseiros, a cena estaria completa!
Futebol! E nem ao menos eram de times rivais...Se ambos tivessem parado a conversa para assobiar em uníssono para a garota bonita que passou por ali e fizessem elogios grosseiros, a cena estaria completa!
Desci as escadas pensando: “Sinal dos tempos” (e
nem sei por que me ocorreu uma expressão cristã nesse momento)! Embora me deixe
bastante satisfeito a amistosidade entre dois credos diferentes, traduzida numa
animada conversa próxima ao metrô, entre tanta coisa acontecendo no mundo, com
toda a incoerência espiritual e ideológica do mundo, aqueles dois, que dedicaram
sua vida à busca das coisas do espírito, não tinham assunto melhor que discutir
do que a permanência ou saída de um "fulano" de um clube da capital.
Tudo bem que sejam jovens e (quase) todo jovem goste de futebol, mas imagino
que os dois tenham muito a aprender um com o outro e a ensinar ao mundo
(supondo-se que é esta a missão dos profissionais do espírito e creio que essa
seja uma definição razoável para um religioso).Em volta deles um mar de gente
desamparada espiritualmente passa e lança aqueles dois um olhar de curiosidade
muda. Certamente à maioria ocorre o mesmo que me ocorreu ao vê-los juntos.
Ninguém, no entanto pára para ouvi-los e é melhor que não o façam. Iriam ficar,
como eu, decepcionados.
Saber sobre as novidades do futebol talvez seja
do interesse de alguem, mas esse alguem iria preferir ouvir numa roda de
conversa de bar ou ler nesses jornais esportivos que viraram febre. Mas de
monges...Nosso mundo parece estar se tornando cada vez mais banal. Na próxima
vez em que alguém me perguntar o porquê de eu às vezes ser tão cínico, vou me
lembrar desse momento para elaborar uma resposta adequada. A vida é estranha. E estranhos somos os que tentam arrancar-lhe algum significado.
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