...então, me levantei um tanto trôpego, cambaleei no escuro de madrugada até a mesa do computador. Acabei desistindo de ligar e passar mais uma madrugada insone entre os bits e bytes fluidos da net. Deixei-me ficar no sofá, gozando o barulho da chuva que finalmente veio lavar um pouco os pecados e as calçadas apinhadas de BH. Esse tempo chuvoso deixa a cidade e o espírito encharcados, mas curiosamente me sinto confortável. É sempre confortável estar na própria pele nesses momentos de solitude, quando o teatro do mundo baixa o pano e temos um tempinho para passar em nossa companhia.
Senti um impulso ridículo de fumar um cigarro. Bobagem, porque eu não fumo e nem nunca fumei. Só me pareceu apropriado. Ficar sentado no escuro ouvindo a chuva pede a companhia de um cigarro ou uma bebida (sei lá de onde diabos tirei essa idéia! Acho que a falta de sono está me afetando de verdade! Ou isso, ou ainda não assassinei completamente todo o meu romantismo balzaquiano!), mas me lembrei que também não bebo. Isso é um complicador, porque seres humanos são um pouco inclinados a terem vícios de toda ordem e quando não se permitem viciar nesses entorpecentes dos neurônios, viciam-se em anestesiar a mente com ideais ou idéias. Receio que meu caso seja o ultimo.
Um cigarro ou um copo de bebida amarga são coisas mais simples e talvez melhor companhia para uma madrugada insone. Não requerem esforço algum e talvez me relaxassem o bastante para voltar a dormir, enquanto o vício de voar em idéias talvez seja justamente o que me faz perder o sono.
Vai saber...
Não tendo como companhia senão um emaranhado de idéias desconexas, fiz uma pequena “associação livre” em meus pensamentos, apenas para ver o que viria, já que eu estava com preguiça demais para articular qualquer coisa por vontade própria. Veio-me isso do nada:
“O diabo mora nos detalhes.”
Pensamento estranho para se ter sentado no escuro, de madrugada. Li isso em algum lugar...ouvi de alguém. Um tanto lúgubre, mas já tem um tempinho que deixei de ignorar um pensamento apenas porque ele pode mexer com os brios místico-religiosos meus ou de outrem. Nós não pensamos nada por acaso.
Associado a isso, me veio outro pensamento, o de que esse primeiro é uma deslavada mentira.
Deus é quem mora nos detalhes.
Honestamente falando, só pensamos em coisas como “buscar a felicidade “ porque a vida é basicamente uma eterna fuga do sofrimento. Viver é difícil, sofrido o bastante para que busquemos muitas formas de ter um pouco de prazer para aliviar a dor. Claro, essa é a concepção de alguém que é viciado em idéias, mas creio que quem se vicia em ideais, certamente vai ter da vida uma visão mais rósea, mais romântica, o que talvez não seja necessariamente errado, mas dificilmente poderia considerar uma visão honesta.
Preciso mesmo dormir mais...
Continuando, quando saímos de casa pela manhã, não levamos uma harpa e folhas de palmeira e cânticos para nos encontramos com nossos irmãos, não saímos para um piquenique. Nós vestimos a nossa melhor armadura, pegamos espada, escudo, cota de malha e rifle, porque nós vamos para a guerra e o campo de batalha é o mundo. Tudo bem que, como homens modernos, essas armas estejam disfarçadas de sorrisos falsos, afetação, formalismos e muita dissimulação, mas nem por isso a guerra deixa de ser mais cruenta e nem por isso nossos algozes deixam de ser hostis. O mundo não é mau ou bom. Apenas é. Nossos juízos de valor é que dão a tônica e os tons do mundo. No meu caso, já não me permito ingenuidades que ensejam acalentar pensamentos mentirosos. Já não consigo mentir para mim mesmo.
Reconheço que a vida perde uma profusão de coloridos a medida que se vai abandonando as ilusões caleidoscópicas que a sustentam. Mas talvez seja apenas uma questão de desenvolver novos sentidos com o que perceber o mundo. Torna-se mais fácil compreendê-lo e aceitá-lo ( e às pessoas que o compõe) quando se para de julgá-lo em termos de bem e mal. São conceito muito fluidos...
Mas dentre toda a agrura que perpassa a vida de um ser humano, mais especificamente deste que vos digita, existem uns pequenos Oasis, que talvez sejam mais preciosos por raros que sejam. Pequenos momentos deslocados no tempo e no espaço entre um problema e outro, detalhes, onde quem mora é Deus.
Um poema de Yets, Pessoa ou Brontë, um encontro de idéias com alguém instigante, algo criado por alguém com amor, notícias de um amigo ausente, rir acompanhado, chorar sozinho, ter uma percepção do absurdo ( que muita gente confunde com inteligência), barulho de chuva no telhado, um gato ronronando no sofá, cheiro de terra molhada e de café quente, som de crianças brincando, silêncio numa madrugada de chuva, um bom livro e tempo para lê-lo e, é claro, os cabelos e olhos claros da minha filha e sua risada alegre.
Essas coisas vêm subitamente me fazer companhia onde faltou um cigarro ou uma bebida que me fizesse sentir completa e decentemente decadente.
E eu me sinto feliz por Deus existir nesses detalhes e grato por vir me fazer companhia. Tenho com a idéia de Deus ou deuses uma pugna que na verdade diz mais da incoerência das religiões e minha incapacidade de fazer vistas grossas a essas incoerências do que com a natureza ou existência do divino. Não sei realmente se Ele ou Ela existe ou não, mas se tenho alguns detalhes na vida pelos quais ser grato, então, seja lá quem for, esteja onde estiver, sou-lhe grato por isso. Não é o bastante para me fazer ajoelhar no escuro entoando hallelujahs, ou desejar ir a um templo (Deus me livre!), mas já é um bom começo de uma possível reconciliação, senão com a religiosidade, ao menos com o divino.
Agora que através de uma associação livre de pensamentos fiz as pazes com Deus ou a Deusa nos detalhes da minha vida, talvez fosse uma boa coisa me reconciliar igualmente com o sono...