Nasci ao mundo, terra estranha, para nele estar estrangeiro, talvez em papel mais confortável, do que o anterior, de apátrida na minha terra natal.
E nessa, que era então uma terra de espinhos morais, por um longo tempo caminhei com alma e pés descalços.
Mas agora, caminho por palácios gigantes de concreto e vidro e aço polido e percorro os salões enormes, onde homens tambem polidos, duros como concreto e com corações de aço, que veem a si como gigantes, sentam-se em tronos outorgados e decidem o destino de muitos.
Nesta seara igualmente espinhosa, eu caminho no piso de mármore frio, ressoando com meu pisar o do som dos passos de muita gente em pressa.
Nos pés levo sapatos que custam o salário de um trabalhador e na alma, a certeza de estar vivendo em vão.
Desgostoso, deixo a mente escorregar, deslizo para os reinos da memória e me lembro...
Foi me dito que no início, Deus criou o céu e a terra e então, dentre tudo isso, dedicou especial atenção em meio a ordem criada, ao que seria o meu quinhão de caos e de dor.
Destinaram-me a uma vida servil, de costas e cabeça curvadas, mãos e alma embrutecidas a lavrar do solo o sempre insuficiente pão.
Deram-me na saída, aspirações subalternistas com que me distrair nos momentos de folga e me estenderam a garrafa onde, por sonhos etílicos, no esquecimento da minha miséria, também desapareceria nas minhas alienações do eu, a consciência da dureza da minha servidão destinada.
Apontaram-me altares vazios diante dos quais eu deveria me curvar e oferecer com fé orações que seriam frequentemente ignoradas. Mostraram-me deuses indiferentes ou surdos, aos quais eu deveria oferecer lágrimas e súplicas e paradoxalmente os temer e os amar.
E, nos arremates da minha sina, entre os atos de nascer sozinho e morrer violentamente, existiria um hiato de tempo em que meu corpo serviria ao conforto dos que seriam os eleitos à grandeza e seria para mim o palco do espetáculo amargo das minhas dores e do meu desamor.
Algo, no entanto, falhou e eu me tornei ainda mais miserável, estando o tempo todo dolorosamente consciente de mim mesmo e do que poderia ser o meu destino.
Na infância, no jardim interno que toda criança leva na alma, vicejava em meus pensamentos uma chama a que eu não tinha o direito.
Como um pequeno Prometeu mal nutrido, de pele marrom e cabelos crespos, roubei-a ao diabo ou a deus e com ela atormentei-me com pensamentos de grandeza, de nobreza talvez ilusória, enquanto me apunhalava o estômago em estocadas dolorosas a fome comum daqueles tempos.
Era a alma-em-espinhos desejando florir de um menino pardo, os pés descalços na poeira vermelha do tempo, em uma terra árida e de homens ásperos, fotografia velha em que o tempo levou as cores e as memórias, nos anos de mil novecentos e setenta e tantos sofrimentos gravados na cabeça cheia de sonhos, a margem da vida, quando não havia alimento para o corpo, amor para a alma ou futuro para o mundo.
E lá, na poeira vermelha, por entre ruas sem calçamento, agua poluída, fome, doenças, miasmas e gente sem metafísica, poderia haver poesia onde sequer havia pão?
E ainda assim, teimava em surgir na pulsação do meu espirito ainda indomado, o impossível dentro do possível, o infinito ardendo na palma da mão pequena, magra e de unhas sujas.
Nos limites invisíveis da minha prisão sem grades ou trancas, um mundo vasto delineava-se no anseio de ser mais do que o corpo frágil, constantemente carente de nutrientes e afagos, o estômago roncava e eu sonhava com a Terra do Nunca, poesia brotava na mente no mesmo ritmo que se estragavam na boca os dentes sem tratamento, e passava a paralisia cinza do tempo entre as paredes sem reboco e por entre almas sem abstrações.
Para onde foram esses dias perdidos? Em que passado refeito no meu emaranhado de traumas perdeu-se minha pequena e brilhante alma, o futuro e a chama verde e teimosa da esperança?
Fecho os olhos para o passado e os abro ao presente e olho para meus sapatos lustrosos, que custaram o salario médio de um trabalhador, (talvez um homem enorme, melhor do que eu, alma simples de mãos calosas que ergueu do nada esses palácios em que seu destino é decidido) e sinto por mim mesmo um desprezo profundo, próximo ao rancor e fujo pelos corredores sentindo o olhar acusador e atemporal de um menino marron, criança parda perdida na poeira do tempo.
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