Os gatos tem fuso
horário curioso.
Fossem como as corujas
ou morcegos e demais coisas noturnas, eu até compreenderia os
entreveros travados as tantas da madrugada.
Mas eu tenho gatos
desde que me lembro e contrariando o consenso geral, suas excelências
felinas não são absolutamente animais noturnos. Então, é favor
não confundir as trinta e tantas cochiladas durante o dia com
preguiça. São apenas as pausas necessárias ao exercício da sua
majestosidade.
Eram cerca de três e
meia da madrugada.
Despertei com um
barulho bem familiar.
Este bairro em que vim
morar é extraordinariamente silencioso, o que tornou o ato de dormir
algo penoso nos primeiros meses.
Esse é um subúrbio
de classe média, sossegado, quintais grandes e bem cuidados, cheios
de árvores frutíferas, pracinha bem cuidada onde crianças
igualmente bem cuidadas correm atras de cachorros; aposentados que
após o estranhamento inicial com o elemento estranho (e
provavelmente ameaçador, pois essa gente costuma associar pele com
mais melanina a ameaça), cumprimentam com um “bom dia” de fina
cortesia.
Bem diferente do
barulho efervescente e infernal do meu antigo bairro, onde o silêncio
era e ainda é um luxo tão escasso quanto saneamento básico. A não
ser que seja o silêncio que antecede o desastre, em noites de tretas
resolvidas a bala, facada ou barbaridade semelhante.
Mas o som que me
despertou era o já conhecido debate que antecede uma guerra de
extermínio travada entre dois gatos.
Da janela enorme da
cozinha eu tinha (e tenho) uma vista panorâmica da cidade e da
vizinhança. Vejo diversos telhados, sacadas e varandas, os prédios
iluminados da cidade ao longe e mais alguns aqui perto.
Ali estavam, no telhado
do vizinho, dois velhos conhecidos meus. Um gato branco enorme, que
na falta de referencias, apelidei de Saruman. O outro, era o gatarrão
dominante desse território, um preto e branco, tipo Frajola, que
mais de vez observei por a correr desafiantes atrevidos. A esse eu
sempre chamei de Néro, pois suas guerras colocam fogo no seu
império.
Estavam naquela fase do
embate em que apresentam suas alegações para legitimar a posse do
território. Frente a frente, caldas agitadas, focinhos em riste,
orelhas levemente arqueadas para trás e pelos do corpo eriçados,
para avantajar-lhes artificialmente o tamanho. Desafiavam-se com
miados guturais de gelar o sangue de almas supersticiosas.
Gatos não são animais
selvagens. Na verdade, comportam-se como verdadeiros políticos.
Discutem os pormenores da contenda em termos polidos e
cavalheirescos. Não chegam as vias de fato, senão depois de
esgotados todos os argumentos possíveis.
Eu estava com sono e
queria voltar a dormir, pelo que deu vontade de gritar: “Calem a
merda da boca e caiam não porrada de uma vez!”.
Não o fiz. Moro agora
em terra de gente educada, de aposentados gentis e cachorrinhos pugs
e beagles. Não posso gritar impropérios nas altas da matina.
Ademais, estou certo
que os nobres felinos em contenda, votariam aos meus protestos chulos
o mais frio desprezo, como é da natureza altiva deles.
Recolhi-me em silencio
à minha insignificância.
Peguei um
copo de água. Voltei a janela e os termos entre os gatos parecia
não chegar a um acordo. Muito havia a ser debatido aparentemente. O
destino e supremacia de uns dois hectares estava sendo decidido e
não o podia ser feito de modo leviano. Havia na balança o governo absoluto daquela área e estamos falando de muitos ratos gordos e pássaros
suculentos, gatas no cio, latas de lixo a revirar, diversos cachorros
a atazanar e paparicos por parte de uns e vassouradas por parte de
outros moradores e demais posses e possessões que caberiam ao
vencedor do litigio.
E qual deles tinha
direito?
Um argumentava:
- Eeeeeeeeeuuuuuuuuuu....EEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUU!
Ao que o outro
respondia energicamente:
-NO NO NO NO
NO.....EEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!
E a coisa ia assim até
perto das quatro horas.
Não se pode criticar
esses debates barulhentos da aristocrática espécie Felis Silvestris Catus, sem saber a que
se destina;
Evitar uma briga furiosa e mortal!
Evitar uma briga furiosa e mortal!
Briga de gato não é
pra ser assistida por almas sensíveis.
Por mais delicado e
gentil pareça seu bichano, quando se mete em uma briga, o propósito
não é a agressão gratuita. Busca-se a morte do outro. O “Mimi”
do travesseio torna-se um huno, um Khal Drogo de bigodes e quatro
patas. O gato, animal dócil e tranquilo subitamente se torna uma
maquina de combate, sem compaixão pela pessoa do querelante e busca,
uma vez inciada a lide física, o extermínio cabal do outro.
Por isso mesmo, por não
serem selvagens e por terem ciência das regras cruéis que se impõem
sobre a guerra felina, e que debatem demorada e longamente, ora
sussurrando , ora subindo o tom de seus miados que apavoram corações
supersticiosos.
A coisa ia por ai, eu
já impaciente (e confesso que impaciente para que um deles
ou desse causa ganha ao rival, ou partissem logo para a guerra,
pensamento inferior de um ser inferior, que só queria dormir)
Pois aparentemente,
Nero se cansou de argumentar e se recusou a ouvir as alegações
finais do oponente.
Berrou uma ameaça gélida, como o grito de uma Banshee e após esse aviso, imprudentemente ignorado por Saruman que sibilou um desafio, Nero desferiu o primeiro golpe.
Berrou uma ameaça gélida, como o grito de uma Banshee e após esse aviso, imprudentemente ignorado por Saruman que sibilou um desafio, Nero desferiu o primeiro golpe.
Avançou como uma cobra
dando o bote na jugular do outro, que revidou com a mesma fúria.
Como eu disse, briga de
gatos não é para almas sensíveis.
Se engalfinharam sobre
o telhado vociferando, disparando tiros e mais tiros de garras, dentes
e ódios.
Eram rápidos,
misturaram-se em um borrão de pelos, rugidos e fúria, sendo
impossível dizer quem levava a vantagem.
Amo gatos.
Se eu pudesse ter
escolhido ou se alguma ocasião puder escolher, viria ou virei a este
mundo como um desses animais magníficos e injustiçados.
Pois eles são
políticos por natureza, pacíficos e nunca fazem gestos vazios.
Evitam como podem o conflito, porem, uma vez iniciada a guerra, ela é
cruel, violenta, definitiva e também rápida.
Nero e Saruman caíram
de um telhado para o outro, uma queda de mais de três metros, ainda
unidos na sua batalha gaticida. Tão empenhados estavam nela, que nem
pareciam notar a queda. Era uma coisa terrível de se ver.
Uma vez eu vi um
sujeito tentar apartar uma briga de gatos. O pobre infeliz pagou com
uma tira de couro da mão por aquela intromissão.
Gente tola só aprende com a experiencia. Gente sábia aprende com a história (sua e dos outros).
Expectador estava e expectador fiquei.
Gente tola só aprende com a experiencia. Gente sábia aprende com a história (sua e dos outros).
Expectador estava e expectador fiquei.
Por um momento a peleja
pareceu pender a favor do desafiante. Nero soltou-se de Saruman e
disparou, aparentemente em fuga, em direção a parede de uma sacada, com o outro, triunfante
em seu encalço. Mas era uma estratégia calculada.
Nero pulou em direção a
parede e tendo o rival bem atrás de si, quicou como uma
bola, saltando por sobre o oponente, pegando-o na sequência em parte
macia e desguarnecida de defesa.
Na janela, sussurrei um:
Na janela, sussurrei um:
- 'Puta que o pariu!”
Claro que descrevi
porcamente um movimento que foi rápido demais para os meus olhos,
mas posso afiançar que foi estratégia. Nero é um gato mais velho.
E dizem que o Diabo sabe mais por ser velho do que por ser o Diabo.
Pois guerra se ganha
com inteligencia, além da força.
Confiante de sua
vitória, Saruman se descuidou e em um movimento certeiro, Nero pôs
termo à escaramuça.
Desferiu golpe sobre
golpe, agarrado as costas do pobre rival, que desesperado, usou suas
ultimas forças para se desvencilhar do abraço mortal, e partiu como
um raio saltando de telhado a telhado, lutando desta vez, não pela posse do território, mas para preservar o que sobrou de suas sete vidas.
No rastro dele foi o
vencedor, ainda disparando seus golpes. Como eu disse, gatos evitam
briga, mas quando se metem em uma, não querem deixar pedra sobre
pedra.
Os perdi de vista
quando saltaram por sobre muro no quarteirão de baixo, deixando um
rastro de pelos e sangue pelos telhados.
Aos que se preocupam
com a sorte do pobre gato vencido, lhes asseguro que ele está vivo e
bem.
Essa briga já foi há
umas semanas e dia desses eu o vi passeando, saltando por sobre uma
arvore próxima.
O Status Quo foi
mantido, Nero governa soberano no território e ao perdedor, um de uma
lista de muitos, cabe aceitar o papel secundário, de macho beta,
gama ou delta, porque o Alfa, segue inconteste como Gatarrão do
território.
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