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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Cartas de Lugar Nenhum 2

Tenho quase certeza de que morri.
Incomoda não lembrar e não saber se ao menos vivi antes de ter morrido. Ainda que não lembre o tipo de pessoa que eu fui, supondo-se que fui pessoa que supusesse o que quer que fosse, penso que sempre me ha de ter me incomodado a ignorância sobre o que quer que seja.

Aqui estou em topo de montanha muito alta, sem possibilidade alguma de descer, em cabana que nem posso imaginar como foi feita, por quem e como diabos trouxeram para esse cume isolado, primeiro a cabana na qual estou a escrever isso, depois a pessoa que nela habita a indagar como tudo isso se deu.

Em torno dessa cabana ha uma área pequena, um cimo de pedra cinza e quente, onde em pequenos trechos teima em crescer Urzes e outra vegetação rala e pobre.

Não posso dar mais de trinta passos em qualquer direção sem dar com um abismo se estendendo por muitas centenas de metros abaixo à terra e bilhões de quilômetros acima, às estrelas.

Não ha sinal de trilha ou outro meio de acesso pelo qual teria sido possível trazer para este sítio nas alturas todo o aparato que compõe o meu cárcere ou eu próprio. E o pouco terreno é de tal forma acidentado que nem mesmo por meios aéreos se poderia trazer qualquer coisa.

Não por meios que eu possa imaginar.

Há ainda outras coisas surpreendentes; como o fato de aqui ser absolutamente alto, porém a temperatura é agradável, a cama estar sempre limpa, sempre haver pão e queijo a mesa vindos não sei de onde e por mais que eu beba daquela bilha, a água nunca acaba e esta sempre fresca.

Os dias por aqui são extraordinariamente longos e estou quase certo que a primeira noite que surgiu foi em consequência de eu ter notado que o dia estava anormalmente longo.
Conjecturei muita coisa nesse tempo entre a primeira vez que escrevi neste livro em branco e o hiato que surgiu até que peguei este lápis novamente.

Talvez tudo isso seja irreal e seja eu um louco a babar incoerências por detrás das paredes acolchoadas de um asilo qualquer.
Mas como sei o que é loucura e como é que conheço a palavra "asilo"?

E que língua é essa na qual estou escrevendo minhas dúvidas, inclusive sobre a própria e quem ma ensinou?
Se morri de fato, isso tampouco explica esse não-lugar onde estou. A distância vejo cimos de outras montanhas onde é possível haver neste momento outros como eu, atordoados pelo seu não saber.

Ignoro que tipo de pessoa eu fui, mas se estou morto como interpretar este lugar onde estou preso e bem cuidado?
O diabo não seria tão gentil e os anjos não seriam tão cruéis...

Ando a volta dessa cabana como se andasse a volta de mim mesmo e esse limite do abismo cada dia mais me parece convidativo, como se eu devesse dar por ali um salto de fé para transcender minhas dúvidas e a mim mesmo.

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