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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Implicâncias Minhas: Fulano, Farmacêutico.



Entrei na farmácia perto das onze da noite. Era uma daquelas farmácias com uma decoração moderninha e que parece mais um mini-shopping do que uma drogaria. É uma boa estratégia essa de vender varias coisas numa farmácia, porque você entra atrás de um analgésico e acaba levando um pacote de ração para seus gatos (coisa de que, aliás, eu também estava necessitando naquele dia).  

Estava vazia, exceto por um casal de idosos que no balcão de remédios, monopolizava as atenções do único funcionário de plantão. Sujeito bonito, tal como as pessoas entendem a beleza masculina. Fortinho, cabelos muito claros e impecáveis, assim como o seu jaleco onde pendurado um crachá o identificava como Fulano de tal, Farmacêutico. Muito engomado, muito aprumado... Dir-se-ia que sua mãe ou esposa provavelmente o engomava a ferro antes de ele por o pé na rua. Atendia o casal de idosos também aprumados. Senhor bigodudo, com óculos de aro de tartaruga, calças de linho e camisa de seda. Ela, senhora muito distinta (tal como as pessoas entendem a distinção), cabelos brancos rigidamente alinhados com laquê (eu acho, porque o cabelo dela dava a impressão de coisa sólida, muito compacta), colar no pescoço e fala suave. Aquele distinto casal era do tipo de “aristocracia mineira” que freqüentemente encontramos nesses locais “metidos a besta”, como shoppings ou restaurantes “bem freqüentados”.


Fulano Farmacêutico os atendia com muita solicitude, dando longas explicações sobre os horários em que deviam ser tomados, reações adversas e outras informações que a mim pareciam ser mais da alçada do médico que os receitou do que do farmacêutico que os vendia. Azar! Nada tinha com aquilo. E meu deus,  como tomavam remédios aquela dupla de velhinhos aristocráticos! Tinham ao balcão bem uns trinta tipos de caixas de remédios e estou certo que a segunda metade daqueles remédios, serve, provavelmente, para combater os efeitos colaterais advindos da primeira metade tomada.

Estava quase saindo em busca de outra farmácia 24 horas, quando o casal recolheu sua cota de remédios e despediu-se do farmacêutico. Este, ainda dentro do seu proceder solicito, despachou-os com toda formalidade e educação. Gostei dele. Gosto de gente educada e principalmente, de gente paciente e aquele rapaz engomado demonstrou no trato com o casal de idosos, ser bem fornido de tais atributos.
Ledo engano!


Logo que os idosos se retiraram (e o farmacêutico os acompanhou com o olhar até chegarem ao caixa, ignorando completamente a minha presença junto ao balcão, coisa que estava me enervando) aproximei-me para pedir por minha vez o remédio que precisava. Assim que se dignou a olhar a minha pessoa, Fulano farmacêutico passou por uma curiosa transformação:

Sorriu, abandonou a postura rígida em que estivera quando atendia os idosos, assumiu um ar displicente e posso afirmar com segurança, que ficou com o corpo numa posição meio-diagonal curiosa. Até o tom de sua voz pareceu outro quando, ainda sorridente, abriu a boca para me atender desse modo:

- Fala aí, Guerreiro!

Guerreiro? GUERREIRO?
No curto espaço de tempo que levou entre a fala dele e a minha resposta, minha mente imaginou umas cenas engraçadas e eu meditei umas indignações a velocidade da luz.


“Guerreiro? Esse sujeito engomado me chamou de guerreiro... Que modo mais peculiar de atender um cliente! Que quererá dizer com isso? Vejamos; imagine eu trajando uma túnica de couro cru, tendo numa mão um machado de bronze  de quinze quilos e na outra um escudo de madeira, mais um capacete com chifres e...Não, espere...Isso é muito nórdico. Minha ancestralidade é de um tanto mais ao sul do equador. Hummm...Talvez um guerreiro Massai, de dois metros de altura, com uma lança de três metros e um escudo de quatro!? Não. Onde vou alojar nessa imagem os meus parcos 1,69 metros?”

“Talvez um Bantoo ou um Yorubá?”

“Um Cartaginês ou sudanês da antiguidade talvez? Não, sou esquálido demais para isso...”


E foi assim que cheguei à conclusão de que não, eu não sou um “guerreiro”, e o modo como aquele Fulano Farmacêutico me tratou, foi um inconsciente e ainda assim indesculpável gesto de racismo velado. Oras, para o vovô de óculos de aro de tartaruga é “pois não senhor” e “volte sempre senhor” e para mim é “Fala aí guerreiro”?

Certo. Sujeito negro trajando jeans desbotado e camisa de tecido sintético só pode ser um “mano”, um “guerreiro da quebrada” e é claro que é desprovido de boas maneiras ou não sabe falar senão a linguagem do gueto, de modo que Fulano Farmacêutico pensou que pode muito bem dispensar o profissionalismo e a cortesia e me tratar em termos de fingida simpatia, que é outra forma de racismo paternalista que considero detestável. Alguns podem argumentar que os modos... informais de Fulano farmacêutico eram apenas e simplesmente um tipo de simpatia e eu concordaria com estes, caso ele tivesse dispensado um tratamento idêntico ao casal de idosos. Seria o caso de tratar o velhinho como “truta” ou a velhinha como “tiazinha”. Mas isso não aconteceu. E preconceito “positivo” ainda é preconceito!

Quero e tudo me leva a crer que ele não teve a intenção de me ofender e na verdade, usou uma lógica absurda, talvez a de que “pessoas diferentes devem ser tratadas de modo diferente”. E é fato que a maioria das pessoas racistas ignora que o são e mesmo reagem com fúria quando lhes denunciamos os gestos racistas. Da mesma forma, muitas pessoas que sofrem discriminações preferem pensar que não aconteceu, ou que se tratou “ de um engano”. Queria poder sublimar a coisa desse modo... Tornaria a minha vida algo mais ilegítimo, mas é certo que seria mais fácil aceitar as coisas como são.


Mas não! Fulano farmacêutico a pretexto de “ser simpático” me destratou e tal gesto merecia e exigia pronta resposta. E eu a dei do seguinte modo; Aproximei-me do balcão dando-lhe meu mais simpático sorriso e olhei-nos olhos. Falei do modo mais formal e afetado possível:

-Muito “Boa Noite” para o senhor também, senhor... (e enfatizando a palavra “senhor”, inclinei-me para olhar o seu crachá, como se não soubesse o nome dele. Voltei a olhar para ele e fiz uma pausa de uns milissegundos como que para me certificar de que o rosto correspondia a fotografia do crachá), Senhor Fulano. Necessito  da medicação (X).


Aos meus gestos e fala Fulano Farmacêutico ficou desprovido de gestos e fala. Sua pele assumiu umas cinco cores camaleônicas. Parou de sorrir imediatamente e ficou rígido.

-Pois não senhor. Só um momento senhor!


E assim fui alçado da categoria de “guerreiro” para a minha legitima posição naquele momento. Eu era um “senhor”. E não por ter trinta e oito anos. Eu o seria ainda que tivesse dezoito ou vinte e pouco. Sou um homem, um estranho e um cliente e nada justificava aquela atitude pretensamente “amistosa” da parte dele, senão o programa de tolos estereótipos raciais e sociais que certamente rodou no processador daquele “simpático” farmacêutico. Esperei que voltasse com a minha medicação. Já então era o mesmo farmacêutico solicito e educado que atendeu o casal de velhinhos aristocráticos. E em educadas escusas me informou que o remédio estava em falta (numa farmácia em que nada, nem ração de gatos e nem mesmo bengalas faltava), mas que havia um similar de outra marca e laboratório e se eu queria levar este. Ainda com seca afetação eu disse:


-Conquanto tenha a mesma fórmula, o mesmo princípio ativo e a mesma posologia, não faço quaisquer objeções.

E após me tranqüilizar quanto a isso, mostrando a bula inclusive, perguntou se eu trouxera a “receita”.

-Se o senhor se refere à prescrição médica, aqui está.

E escorreguei a “receita” (que já estava sobre o tampo e debaixo dos meus dedos) pelo balcão que ele pegou e conferiu devolvendo-me a cópia.
Por minha vez, conferi cópia e medicamento, e ainda afetado e cerimonioso agradeci a atenção prestada.

- Muito obrigado Senhor Fulano. Tenha uma boa noite.

O costumeiro (e temporariamente esquecido) profissionalismo de Fulano farmacêutico  despachou-me com o “Obrigado senhor, volte sempre senhor” apropriado.

Paguei e saí certo de que Fulano entendeu o recado. Não estou tão  certo de que vá tratar alguém com mais ou menos profissionalismo e sem comportamentos raciais ou elitistas, mas certamente vai se lembrar de que numa noite dessas um “mano” passou pelo balcão e mostrou a ele um pouco de boa educação.De todo modo, penso que o melhor modo de lidar com uma atitude (inconsciente ou não) com a qual eu não concorde é ainda fazer mais do que brigar ou exigir direitos, embora por vezes o caminho seja este.  Puni Fulano com o modo mais efetivo de se combater um preconceituoso:

Eduquei-o.

Infelizmente, no processo me esqueci completamente de comprar a ração de gatos...

3 comentários:

  1. Uma das coisas que mais me irritavam na minha adolescência eram as piadinhas sacanas que eu ouvia em relação aos meus pouquíssimos, reservadíssimos, calmíssimos e nerdíssimos namorados.

    Mas, quando eu fui estudar as representações e como a história dos negros no Brasil foi contada ao longo do século XX descobrir o porque de todos as incomodas piadinhas sacanas que ouvi na vida e tantas outras coisas mais... As imagens que se espalham em livros didáticos desde que os livros didáticos, televisão, cinema, literatura, literatura infantil (Monteiro Lobato é um dos meus ódios eternos), novelas e derivativos sobre pessoas de cor quando positiva é essa mesmo.

    E foi por essa descoberta e esse incomodo que comecei a pesquisar história e cultura afro-brasileira, enfatizando os intelectuais, não faria sentido para mim particularmente pesquisar os outros aspectos.

    E pelo visto o farmacêutico absolveu bem essas imagens estenotipadas.

    E sim, concordo que precisamos mesmo reformular os projetos educativos, concordo que educar é o caminho e queria só ver a cara do farmacêutico, passando pelo processo pedagógico a que foi exposto!!! Menino nada fofo, mas de muita sorte poucas pessoas podem ser gabar de ter tão bom professor!!!

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  2. Pandora...
    Foi divertidíssima a cara que ele fez. Entendeu o meu pedantismo e engoliu rapidinho sua postura de "mano". Eu não tive intenção de ser "mau", é claro, e na verdade, acho que teria sido inócuo brigar com ele em termos de "exijo isso, exijo aquilo".

    Já tem um tempo que me incomoda as pessoas a minha volta demosntrarem preconceitos contra judeus, por exemplo, (sem sequer conhecer pessoalmente um judeu) ou então fazerem piadas homofóbicas ou sexistas.

    E eu, alérgico a levantar bandeiras de qualquer tipo, me vejo na incômoda posição de defensor de todas as causas e tribos ultrajadas na minha presença (porque sou ineficiente em fazer isso pela razão de não ter paciência com gente estúpida), ainda que eu não pertença a nenhuma dessa tribos em especial porque não posso ficar calado em situações assim.

    Mas percebi que as pessoas tendem a combater fogo com fogo (ainda que se queimem no processo) e respondem emotivamente a retóricas inflamadas e mais ainda a retóricas permeadas pela razão. Então decidi realizar pequenas ações no quotidiano para expor essas pessoas ao ridículo de suas atitudes, sendo eu proprio ridículo ao faze-lo. É mais ou menos como colocar diante deles um espelho, onde se mirem e fiquem envergonhados do que veem.

    Como o velho Freud, agrada-me "não fazer concessões à pusilanimidade".

    Em psicologia, podemos chamar isso de "extinção do comportamento por estímulo aversivo". Talvez não seja um termo exato, porque Behaviorismo não é o meu forte.

    Até deveria ser, porque funciona que é uma beleza!

    PS: Também sempre detestei Monteiro Lobato (e em alguma medida, Euclides da Cunha, mas o contexto deste outro é de ordem diferente).

    Cheros...

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  3. Essa prática de "realizar pequenas ações no quotidiano para expor essas pessoas ao ridículo de suas atitudes, sendo eu proprio ridículo ao faze-lo" é o que minhas amigas caracterizam como o "não saber brincar" da próxima vez que alguém me que " seu problema é que você não sabe brincar" coloco numa caixa e mando para Minas por SEDEX, vc deve me colocar no bolso rsrsrs...

    No meu caso, por hora, educação é minha saga e bandeira (mas tenho só 25 anos e essas coisas mudam). Mas, por hora, como tudo é educação acabo sendo uma chata que não sabe brincar rsrsrs...

    Não gosto de citar Freud, pq ainda não li ele ainda... mas tb não gosto de fazer concessões a certas coisas. Karma!

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