Translate

sábado, 1 de março de 2025

Deuses, diabos e de como consegui sapatos novos...

 



Duas estradas estreitas de terra branca se cruzavam no meio do nada. E isso não fazia diferença alguma para mim.

E lá estava eu, com calor, suado, empoeirado e irritado.

"Lugar perfeito para um encontro dessa natureza", pensei cuspindo um palavrão na poeira esbranquicenta que me arruinara um bom par de sapatos tão logo desci do carro e afundei até os tornozelos na poeira fina.

"Esse ermo miserável não entrou na prancheta de Deus quando este criou o mundo e é certo que permanece esquecido por ele desde então."

O sol já havia passado do zênite mas ainda derramava fogo sobre o mundo. Refletida na terra batida e branca daquele lugar, a luz solar feria as vistas e me forçava a manter os olhos semi-cerrados, além de piorar a sensação de calor.

A vegetação em volta era um arremedo deprimente  de árvores ressequidas, os galhos espinhosos e retorcidos parecidos a garras prontas para estraçalhar.  Sem folhagem decente, não  ofereciam sombra e alívio, mas sim um espetáculo triste, que desanimava à vista. 

Colocando a mão em concha sobre o relógio, verifiquei já ser perto de uma e quinze da tarde.

"@#%$(impublicável), Johnson! Se essa história for uma mentira sua, vou encontrá-lo e reduzir seus dentes a algo tão arruinado quanto meus sapatos!"

Eu era então um sujeito jovem, a quem o tempo e sofrimento não haviam ainda temperado o caráter, sendo irritável e impaciente. Era um tipo nervosinho e boca suja. E duas coisas me enfureciam além do suportável: Mentiras e atrasos. 

E estava ali justamente para tratar com o pai das mentiras.

E ele se atrasou.

Cheguei na encruzilhada um pouco antes do meio-dia, como estava escrito no cartão que Robert, um tanto bêbado havia me dado. Ele indicou o lugar e me disse para esperar que ao meio dia alguém viria negociar.

"E eu acreditei! (resmunguei para mim mesmo e para ninguém) Um imbecil bêbado mente e um imbecil maior ainda compra a mentira e fica assando no sol e sufocando na poeira!"

O fato é que Robert havia sido um tanto medíocre como músico, mas ficou fora de vista por alguns meses e retornou à ribalta como se fosse um exímio artista. Como eu era igualmente medíocre na minha arte, pensei em usar os mesmos artifícios.

Um pouco depois do meio dia, quando eu já estava bem irritado, passou um homem em uma carroça puxada por dois cavalos tão esqueléticos que só Deus sabe por quais sortilégios conseguiam puxar cocheiro e carro. Pensando se tratar do "negociante", escondi minha raiva pelo atraso num simulacro de sorriso entredentes ao cumprimentá-lo. 

Mas o condutor da carroça apenas me olhou condescendente, apiedando-se por certo do pobre idiota parado ali na encruzilhada a espera de sabe-se lá o que, no meio do nada.

Continuou sua marcha e resmungou ao passar  alguma coisa que me pareceu um cumprimento rude, ao que respondi com um sonoro "vai pra @#$% (impublicável)!", mais irritado comigo mesmo, quando me lembrei de que me esforcei para sorrir pra ele.

Olhei novamente ao relógio e já se aproximava das duas da tarde. Eu estava me voltando para fazer o caminho de volta, desenhando mentalmente e já me deliciando homicida com um cenário no qual eu me desforrava em represália sangrenta na pessoa de Robert Johnson por ter me feito de tolo.

Quando do nada, em uma lufada de vento quente veio aquele sujeito engomadinho e risonho andando na minha direção.

Ria um risinho baixo e sibilante, como o suspiro ameaçador de uma cobra. Uma boca larga e vermelha mostrava uma coleção de dentes muito brancos, nos qual exibia um canibalesco sorriso de deboche.

Vestia terno e calças longas, bem cortadas, risca de giz. Na cabeça, sobre um rosto barbeado, levava chapéu de abas largas, exagerado e feminino demais ao meu ver. Usava uma gravata vermelha extravagante e exalava aquele perfume bem conhecido a quem frequenta casas de má reputação: um misto de perfume barato, cigarros, bebida forte, sangue e sexo.

Absolutamente atraente e repugnante.

Mas o que mais me irritava naquela figura, além do olhar debochado, eram seus sapatos brilhantes de tão limpos, com polainas elegantes, intocados pela poeira daquele oco de coruja.

E mais surpreso do que por ele ter surgido do nada, eu apenas me perguntava:

"Como esse filho de uma @#$%(impublicável) conseguiu manter os sapatos limpos?"

Olhei-o rancoroso, mas ele não deu mostras de ter notado. Com ar zombeteiro  me falou: 

  • Estava me esperando, garoto?

"Garoto é o @$#% (impublicável)", pensei. Mas só pensei. Precisava negociar com aquele tipo. Não era conveniente arrumar uma briga antes de obter uma barganha.

Ainda assim, estava irritado.

Andando na direção dele com passos largos, respondi com aspereza fazendo questão de colocar nessa resposta uma acusação.

          - Desde o meio dia! - Protestei.

Ele ainda mantinha no rosto aquele sorriso de escárnio,  mas se permitiu franzir o cenho e demonstrar um pouco de surpresa.

  • Como é…?

    - Robert Johnson me deu esse cartão - interrompi levantando a altura daqueles olhos amarelos o papel também amarelado - Caso não saiba, está escrito aqui que você estaria nessa encruzilhada ao meio-dia! E já são duas da tarde!

É certo que ele não esperava esse tipo de reação. Deixando morrer um pouco daquele sorriso de tubarão irritante no rosto (o que me agradou ao me dar a sensação de haver obtido uma pequena vitória), ele deslizou em volta de mim me olhando como uma fera prestes a atacar.

  • Você sabe quem eu sou? E o que eu posso fazer?

    - Se eu não soubesse - respondi sem titubear e sem fazer caso daquela ameaça velada - Por que @#$% (impublicável) eu estaria nesta @#$% (impublicável) de lugar estragando meus sapatos de 50 $!?

Ele estreitou os olhos me avaliando por um tempo, parecendo decidir como reagir aquela afronta. Por fim, desatou a rir uma risada estridente e lunática, tirando o chapéu da cabeça e batendo com o mesmo no joelho, uma atitude provinciana que destoava de seu ar engomadinho.

  • Garoto, eu gosto de você! Continue atrevido assim e vai facilitar meu trabalho em muito!

(‘Se esse $%#@ (impublicável) me chamar de garoto mais uma vez, vou me esquecer que ele é a %$#@ do diabo e vou afundar-lhe a socos, o focinho empoado cabeça adentro!”)

  • - Simpatia é dispensável, pontualidade, desejável - bufei mal humorado - E já que falou do seu trabalho, se não fizer objeções, vamos a ele e talvez eu possa sair desse sol e dessa poeira. Afinal, se é pra eu queimar, que seja no inferno e só depois de cumpridos os termos do acordo, não é?

A isso, ele revirou os bolsos do terno elegante em busca de um contrato, mantendo no rosto o risinho de deboche, mas com aquele brilho assassino no olhar . Eu o observava com antipatia crescente. ("Esse infeliz deve ter algum problema nos músculos do rosto, pois não fica segundo sequer sem sorrir como um maldito cafetão! ")

  • Só pra me certificar de que você sabe o que está envolvido…Você conhece os termos deste contrato, rapaz?

    - Agora essa é boa! - ironizei devolvendo seu deboche inicial - Um diabo com princípios! Com o que então, vai querer que eu leia as letras miúdas também?

    Não me entenda mal - defendeu-se o demônio engomadinho, levemente desconcertado - Mas desde aquela coisa lá com o Fausto, estamos mais atentos com essas minúcias nos negócios…

    -Ahã -Debochei - Foi mesmo uma lambança “dos diabos” aquilo lá, não foi? - respondi mofino, com um sorriso maldoso - Pois poupe seu fôlego e o meu. Eu já sei o que está envolvido. Fogo, enxofre, danação eterna e bla-bla-bla…Em troca de talento e dez anos de glória neste mundo você leva minha alma. Foi o que o Johnson me falou

  • Ora, mas isso é interessante… Ele retomou seu tom zombeteiro - Não é todo dia que encontro um tipo que parece ansioso para se desfazer da própria alma.. Não está com medo?

    - Posso suportar ficar com minha alma mais um tempo, meu chapa. O que não posso suportar é esse calor e essa poeira. Vamos acabar logo com isso, se não se importa!

    O funeral é seu, garoto - replicou o diabo sorridente - Assine aqui e será tão talentoso quanto o Robert Jhonson. Por dez anos. Depois disso…

    -Eu sei - Tomei-lhe a caneta e papel da mão e rabisquei uma assinatura descuidada - Fogo, enxofre, etc.

Devolvi lhe-o papel, que ele colocou apressadamente nos bolsos do terno elegante.

  • Onde está o seu instrumento, rapaz? Você quer talento mas nem mesmo traz consigo… O que? O que voce toca afinal? Violão? Gaita? 

    -(!!!??) Se eu fosse pianista, teria de arrastar um piano até este fim de mundo para termos um acordo? @#$% (impublicável), pois meu instrumento está na sua mão - Respondi - A Caneta - Apontei, quando ele fez uma expressão aparvalhada de quem não estava entendendo - Me dê talento o suficiente para eu não me tornar um escritor irrelevante e terá mais uma alma para torturar, se é o que lhe apraz fazer em seu tempo livre. E já pode cumprir a parte do contrato onde você me dá os seus sapatos.

    O que? Como é? De que é que está falando?

    - Está no contrato.

Retirando o papel do bolso, ele leu desconfiado o que rasurei nos termos do contrato, logo abaixo da parte que falava do benefício do talento, acrescentei; “ E um par de sapatos novos”.

Ele ficou furioso. Estava tão distraído debochando de mim que não notou que escrevi mais uma cláusula. Mas ainda assim tirou o par de sapatos e me estendeu. O ar a volta dele crepitava em irritação quando vociferou uma última ameaça.

  • Você pensa que me enganou, garoto. Mas não perde por esperar! Um dia, virei cobrar e você vai aprender o que é o medo!

Ergui os ombros.

  • -De que? Do inferno? Pois saiba o senhor Diabo, eu tinha medo do inferno até um minuto antes de você vir rodopiando risonho nessa poeira. Tinha medo de ele existir. Na hora em que te vi, tive certeza de que o inferno é real. E se o inferno é real, estou certo que assinasse esse contrato ou não, eu iria parar lá de qualquer modo. Então por que @#$% (impublicável) vou ter medo do que não posso evitar?

  • Conheço o seu tipo! Está blefando! Quer me fazer acreditar que não te assusta a dor? O sofrimento? A eterna agonia de uma vida sem esperança? - insistiu o velhaco enquanto eu lhe arrebatava das mãos os sapatos elegantes.

    -Sofrimento? Vida sem esperanças? Bah! Eu já fui casado três vezes, camarada. Você não está falando com um novato nessa seara. Vejo você em dez anos.

Ele ainda estava lá, quando me virei para ir embora e foi um conforto adicional perceber que, a despeito do que eu havia pensando antes, ele era bem capaz de parar de sorrir por alguns momentos. Estava com uma expressão terrível no rosto bem barbeado.

Ainda estou à espera de que ele cumpra a parte do contrato, pois já se vão muitos e muitos anos desde aquilo; e findos os primeiros dez, vinte, trinta anos, não vieram nem o talento prometido e tampouco a cobrança pela minha alma. 

Dentre tantos defeitos, jamais imaginei que o diabo fosse um tratante.

Aquele cretino sem palavra!

Quanto aos sapatos…Serviram, já não me servem mas ainda os tenho.

Não foi uma perda total.




Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...