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quinta-feira, 23 de julho de 2020

Aos Gatos que Guerreavam em dança mortal no teto do...Bairro Esplanada



Os gatos tem fuso horário curioso.
Fossem como as corujas ou morcegos e demais coisas noturnas, eu até compreenderia os entreveros travados as tantas da madrugada.
Mas eu tenho gatos desde que me lembro e contrariando o consenso geral, suas excelências felinas não são absolutamente animais noturnos. Então, é favor não confundir as trinta e tantas cochiladas durante o dia com preguiça. São apenas as pausas necessárias ao exercício da sua majestosidade.

Eram cerca de três e meia da madrugada.
Despertei com um barulho bem familiar.
Este bairro em que vim morar é extraordinariamente silencioso, o que tornou o ato de dormir algo penoso nos primeiros meses.
Esse é um subúrbio de classe média, sossegado, quintais grandes e bem cuidados, cheios de árvores frutíferas, pracinha bem cuidada onde crianças igualmente bem cuidadas correm atras de cachorros; aposentados que após o estranhamento inicial com o elemento estranho (e provavelmente ameaçador, pois essa gente costuma associar pele com mais melanina a ameaça), cumprimentam com um “bom dia” de fina cortesia.
Bem diferente do barulho efervescente e infernal do meu antigo bairro, onde o silêncio era e ainda é um luxo tão escasso quanto saneamento básico. A não ser que seja o silêncio que antecede o desastre, em noites de tretas resolvidas a bala, facada ou barbaridade semelhante.
Mas o som que me despertou era o já conhecido debate que antecede uma guerra de extermínio travada entre dois gatos.
Da janela enorme da cozinha eu tinha (e tenho) uma vista panorâmica da cidade e da vizinhança. Vejo diversos telhados, sacadas e varandas, os prédios iluminados da cidade ao longe e mais alguns aqui perto.
Ali estavam, no telhado do vizinho, dois velhos conhecidos meus. Um gato branco enorme, que na falta de referencias, apelidei de Saruman. O outro, era o gatarrão dominante desse território, um preto e branco, tipo Frajola, que mais de vez observei por a correr desafiantes atrevidos. A esse eu sempre chamei de Néro, pois suas guerras colocam fogo no seu império.

Estavam naquela fase do embate em que apresentam suas alegações para legitimar a posse do território. Frente a frente, caldas agitadas, focinhos em riste, orelhas levemente arqueadas para trás e pelos do corpo eriçados, para avantajar-lhes artificialmente o tamanho. Desafiavam-se com miados guturais de gelar o sangue de almas supersticiosas.

Gatos não são animais selvagens. Na verdade, comportam-se como verdadeiros políticos. Discutem os pormenores da contenda em termos polidos e cavalheirescos. Não chegam as vias de fato, senão depois de esgotados todos os argumentos possíveis.

Eu estava com sono e queria voltar a dormir, pelo que deu vontade de gritar: “Calem a merda da boca e caiam não porrada de uma vez!”.
Não o fiz. Moro agora em terra de gente educada, de aposentados gentis e cachorrinhos pugs e beagles. Não posso gritar impropérios nas altas da matina.
Ademais, estou certo que os nobres felinos em contenda, votariam aos meus protestos chulos o mais frio desprezo, como é da natureza altiva deles.

Recolhi-me em silencio à minha insignificância.

Peguei um copo de água. Voltei a janela e os termos entre os gatos parecia não chegar a um acordo. Muito havia a ser debatido aparentemente. O destino e supremacia de uns dois hectares estava sendo decidido e não o podia ser feito de modo leviano. Havia na balança o governo absoluto daquela área e estamos falando de muitos ratos gordos e pássaros suculentos, gatas no cio, latas de lixo a revirar, diversos cachorros a atazanar e paparicos por parte de uns e vassouradas por parte de outros moradores e demais posses e possessões que caberiam ao vencedor do litigio.
E qual deles tinha direito?
Um argumentava:
- Eeeeeeeeeuuuuuuuuuu....EEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUU!
Ao que o outro respondia energicamente:
-NO NO NO NO NO.....EEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!

E a coisa ia assim até perto das quatro horas.

Não se pode criticar esses debates barulhentos da aristocrática espécie  Felis Silvestris Catus, sem saber a que se destina;
Evitar uma briga furiosa e mortal!

Briga de gato não é pra ser assistida por almas sensíveis.
Por mais delicado e gentil pareça seu bichano, quando se mete em uma briga, o propósito não é a agressão gratuita. Busca-se a morte do outro. O “Mimi” do travesseio torna-se um huno, um Khal Drogo de bigodes e quatro patas. O gato, animal dócil e tranquilo subitamente se torna uma maquina de combate, sem compaixão pela pessoa do querelante e busca, uma vez inciada a lide física, o extermínio cabal do outro.

Por isso mesmo, por não serem selvagens e por terem ciência das regras cruéis que se impõem sobre a guerra felina, e que debatem demorada e longamente, ora sussurrando , ora subindo o tom de seus miados que apavoram corações supersticiosos.

A coisa ia por ai, eu já impaciente (e confesso que impaciente para que um deles ou desse causa ganha ao rival, ou partissem logo para a guerra, pensamento inferior de um ser inferior, que só queria dormir)

Pois aparentemente, Nero se cansou de argumentar e se recusou a ouvir as alegações finais do oponente.
Berrou uma ameaça gélida, como o grito de uma Banshee e após esse aviso, imprudentemente ignorado por Saruman que sibilou um desafio, Nero desferiu o primeiro golpe.

Avançou como uma cobra dando o bote na jugular do outro, que revidou com a mesma fúria.
Como eu disse, briga de gatos não é para almas sensíveis.
Se engalfinharam sobre o telhado vociferando, disparando tiros e mais tiros de garras, dentes e ódios.
Eram rápidos, misturaram-se em um borrão de pelos, rugidos e fúria, sendo impossível dizer quem levava a vantagem.

Amo gatos.
Se eu pudesse ter escolhido ou se alguma ocasião puder escolher, viria ou virei a este mundo como um desses animais magníficos e injustiçados.
Pois eles são políticos por natureza, pacíficos e nunca fazem gestos vazios. Evitam como podem o conflito, porem, uma vez iniciada a guerra, ela é cruel, violenta, definitiva e também rápida.

Nero e Saruman caíram de um telhado para o outro, uma queda de mais de três metros, ainda unidos na sua batalha gaticida. Tão empenhados estavam nela, que nem pareciam notar a queda. Era uma coisa terrível de se ver.
Uma vez eu vi um sujeito tentar apartar uma briga de gatos. O pobre infeliz pagou com uma tira de couro  da mão por aquela intromissão.
Gente tola só aprende com a experiencia. Gente sábia aprende com a história (sua e dos outros).

Expectador estava e expectador fiquei.

Por um momento a peleja pareceu pender a favor do desafiante. Nero soltou-se de Saruman e disparou, aparentemente em fuga, em direção a parede de uma sacada, com o outro, triunfante em seu encalço. Mas era uma estratégia calculada. 
Nero pulou em direção a parede e tendo o rival bem atrás de si, quicou como uma bola, saltando por sobre o oponente, pegando-o na sequência em parte macia e desguarnecida de defesa.
Na janela, sussurrei um:
- 'Puta que o pariu!”
Claro que descrevi porcamente um movimento que foi rápido demais para os meus olhos, mas posso afiançar que foi estratégia. Nero é um gato mais velho. 
E dizem que o Diabo sabe mais por ser velho do que por ser o Diabo.
Pois guerra se ganha com inteligencia, além da força.
Confiante de sua vitória, Saruman se descuidou e em um movimento certeiro, Nero pôs termo à escaramuça.
Desferiu golpe sobre golpe, agarrado as costas do pobre rival, que desesperado, usou suas ultimas forças para se desvencilhar do abraço mortal, e partiu como um raio saltando de telhado a telhado, lutando desta vez, não pela posse do território, mas para preservar o que sobrou de suas sete vidas.

No rastro dele foi o vencedor, ainda disparando seus golpes. Como eu disse, gatos evitam briga, mas quando se metem em uma, não querem deixar pedra sobre pedra.

Os perdi de vista quando saltaram por sobre muro no quarteirão de baixo, deixando um rastro de pelos e sangue pelos telhados.
Aos que se preocupam com a sorte do pobre gato vencido, lhes asseguro que ele está vivo e bem.
Essa briga já foi há umas semanas e dia desses eu o vi passeando, saltando por sobre uma arvore próxima.
O Status Quo foi mantido, Nero governa soberano no território e ao perdedor, um de uma lista de muitos, cabe aceitar o papel secundário, de macho beta, gama ou delta, porque o Alfa, segue inconteste como Gatarrão do território.

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