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sábado, 11 de julho de 2020

E Mais Ainda Sobre Relógios - Variação do Velho Tema


Tic e Tac

Era 19 de dezembro de 1973.

Dia em que o Estatuto do índio foi promulgado, terroristas libertaram reféns em um aeroporto do Kwait, a gasolina estava mais cara no mundo todo e morreu o “Seu Amâncio”, velho rezador da rua de baixo.

Um dia ordinário, na história ordinária de um mundo ordinário.

Em um hospital igualmente ordinário, a enfermeira olhou para o relógio na parede e sentenciou que eu nasci as 10:15.

Se ela pudesse olhar para meu relógio interno, teria anotado na cadernetinha que naquele mesmo instante, ele marcava 68 anos.

Exatos 68 anos.

Aos  67 anos, 11 meses, 29 dias, 23 horas e 18 minutos, constatei surpreso e agradecido, que minha mãe, apesar de três gestações anteriores, vida difícil e má nutrição, ainda era capaz de gerar leite para alimentar mais uma cria.

Marcava 67 anos, 11 meses, 29 dias, 22 horas e alguns minutos, quando exausto de tanto berrar, com frio e irritado, tive meu primeiro sono extra-utero.

Aos 66 anos e dois meses mais ou menos, saltei da fase quadrúpede para bípede e deus sabe, que se eu soubesse o que me sucederia nos anos seguintes, teria continuado um milhar de passos depois daquele primeiro, e mais outro milhar e mais outro depois e estaria agora dando minha terceira ou quarta volta no planeta, feliz como só um desgraçado sem pátria, e também sem lastro, pode ser...

Quando completei 65 anos e algumas semanas, perdi meu pai. Nao para a morte, mas para a vida, o que dói mais ainda. O canalha viveu ainda algumas décadas depois de abandonar a prole ao se desentender  com a esposa. Viveu o suficiente para que eu alimentasse justificado rancor contra ele pelo abandono, mas não o bastante para que eu o alcançasse com o tardio perdão, que me livrou finalmente do peso daquele rancor. A falta dele me inaugurou como pessoa e me estruturou por sobre um vazio de referencias que ainda é algo com que tenho de lidar.

Aquele filho da puta!

Aos 63 anos e 11 meses e 16 dias, quando finalmente se lembraram que meu aniversario havia passado, compreendi que jamais teria uma festa de aniversario. Que talvez jamais teria festa alguma.

Com 60 anos e 10 meses fui pra escola. Aos 58, fugi da mesa escola e não voltei senão depois de vagabundear pelos brejos e descampados do meu bairro, (gosto de pensar que eu era uma versão tupiniquim de Huck Finn), até completar 55 anos. E então eu era um adolescente estudando com crianças. Deslocado e extemporâneo. Mas isso nao chegava a ser novidade para mim.

Aos 54 anos olhei para uma garota na porta de escola, senti vespas de fogo no estômago, uma vontade doida de sair correndo.

 Não corri.

Nunca mais senti vontade de correr e na sequencia de paixonites sazonais que se seguiu, nunca mais fui feliz.

Um pouco depois dos 50 anos, dei o meu primeiro e memorável beijo. Lastimo lembrar que passaram-se alguns anos antes que o segundo viesse e mais alguns anos para que o terceiro o sucedesse a assim foi, até que um pouco depois de completar 43, juventude, carência e inexperiência me levaram a um casamento prematuro.

Aos 39 anos,7 meses e 12 dias a vida dá uma guinada feliz, o destino se distrai , eu roubo um pouco de felicidade e me torno pai, sem nunca ter sido filho. Pego minha filha no colo, rezando para que ela nao repita minha vida. Comecei neste dia a não ser mais uma criatura solitária.

Com mais ou menos 33 anos eu pego em um teclado e digito um apelido idiota em um fórum da internet. Aos 27 anos e seis meses, no rastro de um acúmulo de rancor mútuo, vem o divórcio. Sentimentos de culpa, raiva, e um tardio reboot em uma vida que nem parecia ter começado ainda.

Tic e tac

Passam semanas, meses, anos...As estações se confundem em invernos quentes e verões frios,  a poeira do tempo se acumula sobre perguntas sem respostas e móveis sem uso, minha filha cresce, se torna uma mulher extraordinária, se apaixona, eu agradeço a vida que ela leva, fico orgulhoso, fico feliz, fico triste, envelheço, meu gato morre, meus ideiais morrem antes do gato, enterro ambos, tenho experiencias espirituais, (mas Deus, se existe, continua alhures) e eu vejo os ponteiros correrem ao contrario inexoráveis...

Tic e tac

Reencontro o amor, ou o encontro pela primeira vez. Conheço o medo, com dificuldade aprendo a receber o que sempre dei, estranho e desconfio da dedicação que me é votada, como se não fosse merecedor dela, duvidando o tempo todo que o destino olhe em outra direção pela segunda vez. Acordo e vejo-a ali, linda e tranquila, como eu nunca fui, medito, me critico intimamente,  duvido novamente que a mereça, sinto que o mundo vai desabar a qualquer momento, ou que as coisas voltem para seus devidos lugares e ela me seja arrebatada, entristeço e fico arredio, ela percebe, me conhece, me atura, me acalenta, me ama e me ajuda a voltar aos trilhos da sanidade.

Faço 25 anos e minha antiga profecia mostra-se falha, pois finalmente recebo uma festa de aniversario. De presente natalício recebo a percepção de que nunca completamos mais um ano de vida, mas um a menos.

O cansaço se acumula e eu me sinto velho aos 24 anos. Semanas depois de completar 23, encontro um fio de cabelo branco na barba antes impecavelmente negra, olho pro espelho e debocho: Então é isso, cara! Voce tá morrendo sem nem ter vivido! E rio diabólico e triste da minha decadência.

Meu relógio interno marca um pouco mais de 22 anos agora e eu  sinto que esse resto de tempo é quase uma eternidade. Tempo demais para eu fazer merda na vida, mas tempo de menos para me reconciliar comigo mesmo, com a humanidade, com o mundo...O mesmo mundo que está paralisado por uma pandemia e isso intensifica essa sensação de tempo em slow motion.

 

No fim do dia me recordo divertido do meu deboche antigo e mordaz das pessoas que cismavam de se reinventar o tempo todo, como meio de fugir a própria estranheza.

Ti e Tac...

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