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terça-feira, 20 de março de 2018

O Sagitariano Decrépito





"Que mais há que ocupemos nossas horas, que cair em contradições enquanto esperamos o tecido  fino da vida desfiar?" 
Eu sou um rato. Já percorri essa merda de labirinto trinta vezes e, diabos, eu sei que não há saída, mas vou continuar procurando mesmo assim! E quando por fim me cansar de correr atrás de portas que não existem, vou esburacar essas paredes com os dentes, até que não me restem dentes ou que do limiar do meu desespero surja uma porta qualquer. 

Você desperta com essas palavras reverberando de algum sonho ou lembrança. Como um soldado cujo sono foi mais profundo do que o adequado, salta da cama ouvindo essas palavras, um clarim anunciando mais um dia de guerra.

Anda pala casa como um espectro de madrugada...
De madrugada...Todas as falsas madrugadas em que uma luz difusa e cinza cobre o mundo, você acorda ouvindo palavras, ecos de discursos oníricos ou lembranças, não sabe dizer, e o som de ondas baixas lambendo a areia da praia.

Isso seria confortador, caso o mar não estivesse a várias centenas de quilômetros da sua janela e da sua sanidade (tão cinzenta e incerta como a luz da falsa madrugada e o falso som das ondas que escuta mesmo depois de já estar de pé, na cozinha, se empanturrando de café e solidão).
E você não quer pensar que chegou ao ponto de procurar consolo em devaneios alucinatórios.

Pela janela da cozinha observa sua nova e silenciosa vizinhança.
Talvez a ausência de barulho aqui tenha despertado em sua mente, acostumada a algazarra de sua antiga morada, esse som fantasma de uma praia alhures...

Cioso e agradecido da consideração de seus vizinhos, evita acender as luzes enquanto olha pela janela enorme em meio ao escuro da cozinha. Vê  lá fora, o mar de luzes acesas em uma BH que não dorme. 
Não de todo.

Se recua o olhar por um instante, para a intimidade da sua casa, um fantasma te olha de volta refletido no filme do vidro escuro da janela. Tenta ouvir qualquer som que denuncie vida; criança chorando, buzina de carro, seu coração batendo, um cão latindo, mas tudo que ouve é o zumbido da geladeira e esse som de ondas tão fantasma quanto o homem refletido no vidro segurando a caneca.

Tanta vida lá fora e você aqui, se sentindo esvair como um balão furado.
Agarra-se à caneca com uma força fanática, quase como se o amargo e o calor do café fossem lastro no ar, uma ancora ao inverso, para impedir o inevitável da sua queda.

Sente-se hoje mais perto da morte do que do dia do seu nascimento e é em choque que constata que este é um pensamento que já lhe ocorria aos oito ou nove anos de idade.
Um sentimento de iminência, de ir embora, uma ansiedade que não se configura nem em medo e nem em esperança, semelhante a um ruído branco no fundo da consciência...

Tem poucas expectativas agora.
Você, que era feito essencialmente de fogo e de esperança.
Corre-lhe pelas veias o sentimento de estar inacreditavelmente velho e cansado, como se os fios fracos que te ligam as coisas do mundo estivessem se rompendo um a um

Um dia desses se levantou mesmo antes de saber que havia acordado e antes de ir à cozinha, viu seu corpo ainda deitado e desde então não olha mais para a cama antes de ir pra cozinha ou pra onde quer que seus devaneios o levem de madrugada.

Se seu corpo experimenta cansaço demais para lhe acompanhar, pois que fique. Nunca quis mesmo arrastar consigo presenças relutantes.

Pobre do seu corpo. Anda tão farto da sua companhia...

Fossilizado em cansaço, tão largado quanto o edredom caído ao chão.
Uma casca que você abandona para devanear na janela e no amargo do café que nem mesmo tem certeza estar bebendo ou sonhando que o faz, enquanto fica imaginando onde diabos iriam as pessoas que estavam naquele jato que de madrugada deixava uma trilha reta de nuvem no céu. 

Você sabe que o mundo não inicia e nem termina em si.
Mas você iniciou e terminará em si mesmo.

O que te atormenta é imaginar como subirão as letras finais da droga do filme da sua vida.
Há pensamentos que gostaria de evitar.
Por exemplo, não quer pensar que morrerá tal como nasceu e como viveu: Chorando, com raiva e com medo.

Não quer pensar que será um idoso tão decepcionante para si agora quanto certamente o é para o moleque que foi umas décadas para trás.
Se seu coração encarquilhar dentro desse peito magro, talvez a única paixão que lhe reste no futuro, que seja capaz de o mover, seja examinar o paradoxo de ter ficado velho sem nunca ter sido jovem.

Voce pensa se quer mesmo viver para colecionar tanto arrependimento quanto cabelo branco.
Se por um lado não curou o câncer, tampouco jogou lixo nuclear em um parque, não plantou uma floresta e nem poluiu um rio e é triste se imaginar uma irrelevância tanto para o bem quanto para o mal no ordenamento final das coisas.

Por mais intenso que tenha sido no sentir, pondera que amou em conta gotas e foi igualmente frugal em seu ódio...
Não abraçou nenhuma causa que não tenha abandonado depois, não defendeu nenhum ponto de vista que não tenha renegado.

Talvez apenas se torne mais um velhote com frio, lamuriento e nostálgico.
Ou pior! Talvez se torne desgraçadamente conformado e feliz!

Imagina-se andando por uma casa esmolando atenção e cuidados de netos que te ignoram solenemente e uma parentalha barulhenta, desconfiado intimamente de que eles, a despeito de todo o carinho, desejem inconscientemente que eu você resolva por fim a morrer e deixar o mundo aos que o herdaram.

Você se vê se recriminando pela falta de coragem, pelo apego à segurança na juventude... Imagina os longos diálogos íntimos entabulados nas suas horas vazias, com seus arrependimentos.
. 
Se um dia preferir a segurança de uma gaiola moral, conta ao menos perceber que morrerá de uma forma ou de outra exatamente no dia em que fizer essa escolha.

Você era o fogo, mas transformou-se em lenha.
Você era a seta, mas se converteu no arco.
Você desbravava caminhos, mas tornou-se gado...

Enquanto coloca a caneca na pia, você planeja e se revolta.

Tenciona encontrar a saída, pois esse labirinto não é maior do que seu desejo de fugir dele.

Mesmo tendo de o percorrer mais mil vezes, mesmo tendo de roer as paredes dessa paz pachorrenta da qual todo mundo finge se orgulhar.

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