"Que mais há que ocupemos nossas horas, que cair em contradições enquanto esperamos o tecido fino da vida desfiar?"
Eu sou um rato. Já percorri essa merda
de labirinto trinta vezes e, diabos, eu sei que não há saída, mas vou continuar
procurando mesmo assim! E quando por fim me cansar de correr atrás de portas
que não existem, vou esburacar essas paredes com os dentes, até que não me
restem dentes ou que do limiar do meu desespero surja uma porta qualquer.
Você desperta com essas palavras
reverberando de algum sonho ou lembrança. Como um soldado cujo sono foi mais
profundo do que o adequado, salta da cama ouvindo essas palavras, um clarim anunciando mais um dia de guerra.
Anda pala casa como um espectro de
madrugada...
De madrugada...Todas as falsas madrugadas
em que uma luz difusa e cinza cobre o mundo, você acorda ouvindo palavras, ecos
de discursos oníricos ou lembranças, não sabe dizer, e o som de ondas baixas
lambendo a areia da praia.
Isso seria confortador, caso o mar não
estivesse a várias centenas de quilômetros da sua janela e da sua sanidade (tão
cinzenta e incerta como a luz da falsa madrugada e o falso som das ondas que
escuta mesmo depois de já estar de pé, na cozinha, se empanturrando de café e
solidão).
E você não quer pensar que chegou ao
ponto de procurar consolo em devaneios alucinatórios.
Pela janela da cozinha observa sua nova
e silenciosa vizinhança.
Talvez a ausência de barulho aqui tenha
despertado em sua mente, acostumada a algazarra de sua antiga morada, esse som
fantasma de uma praia alhures...
Cioso e agradecido da consideração de seus
vizinhos, evita acender as luzes enquanto olha pela janela enorme em meio ao
escuro da cozinha. Vê lá fora, o mar de
luzes acesas em uma BH que não dorme.
Não de todo.
Se recua o olhar por um instante, para a
intimidade da sua casa, um fantasma te olha de volta refletido no filme do
vidro escuro da janela. Tenta ouvir qualquer som que denuncie vida; criança
chorando, buzina de carro, seu coração batendo, um cão latindo, mas tudo que ouve
é o zumbido da geladeira e esse som de ondas tão fantasma quanto o homem refletido no vidro segurando a
caneca.
Tanta vida lá fora e você aqui, se
sentindo esvair como um balão furado.
Agarra-se à caneca com uma força
fanática, quase como se o amargo e o calor do café fossem lastro no ar, uma
ancora ao inverso, para impedir o inevitável da sua queda.
Sente-se hoje mais perto da morte do que
do dia do seu nascimento e é em choque que constata que este é um pensamento
que já lhe ocorria aos oito ou nove anos de idade.
Um sentimento de iminência, de ir
embora, uma ansiedade que não se configura nem em medo e nem em esperança,
semelhante a um ruído branco no fundo da consciência...
Tem poucas expectativas agora.
Você, que era feito essencialmente de
fogo e de esperança.
Corre-lhe pelas veias o sentimento de
estar inacreditavelmente velho e cansado, como se os fios fracos que te ligam
as coisas do mundo estivessem se rompendo um a um
Um dia desses se levantou mesmo antes de
saber que havia acordado e antes de ir à cozinha, viu seu corpo ainda deitado e
desde então não olha mais para a cama antes de ir pra cozinha ou pra onde quer
que seus devaneios o levem de madrugada.
Se seu corpo experimenta cansaço demais
para lhe acompanhar, pois que fique. Nunca quis mesmo arrastar consigo
presenças relutantes.
Pobre do seu corpo. Anda tão farto da sua
companhia...
Fossilizado em cansaço, tão largado
quanto o edredom caído ao chão.
Uma casca que você abandona para
devanear na janela e no amargo do café que nem mesmo tem certeza estar bebendo
ou sonhando que o faz, enquanto fica imaginando onde diabos iriam as pessoas
que estavam naquele jato que de madrugada deixava uma trilha reta de nuvem no
céu.
Você sabe que o mundo não inicia e nem
termina em si.
Mas você iniciou e terminará em si
mesmo.
O que te atormenta é imaginar como subirão
as letras finais da droga do filme da sua vida.
Há pensamentos que gostaria de evitar.
Por exemplo, não quer pensar que morrerá
tal como nasceu e como viveu: Chorando, com raiva e com medo.
Não quer pensar que será um idoso tão
decepcionante para si agora quanto certamente o é para o moleque que foi umas décadas
para trás.
Se seu coração encarquilhar dentro desse
peito magro, talvez a única paixão que lhe reste no futuro, que seja capaz de o
mover, seja examinar o paradoxo de ter ficado velho sem nunca ter sido
jovem.
Voce pensa se quer mesmo viver para
colecionar tanto arrependimento quanto cabelo branco.
Se por um lado não curou o câncer,
tampouco jogou lixo nuclear em um parque, não plantou uma floresta e nem poluiu
um rio e é triste se imaginar uma irrelevância tanto para o bem quanto para o
mal no ordenamento final das coisas.
Por mais intenso
que tenha sido no sentir, pondera que amou em conta gotas e foi igualmente
frugal em seu ódio...
Não abraçou
nenhuma causa que não tenha abandonado depois, não defendeu nenhum ponto de
vista que não tenha renegado.
Talvez apenas se
torne mais um velhote com frio, lamuriento e nostálgico.
Ou pior! Talvez se
torne desgraçadamente conformado e feliz!
Imagina-se
andando por uma casa esmolando atenção e cuidados de netos que te ignoram
solenemente e uma parentalha barulhenta, desconfiado intimamente de que eles, a
despeito de todo o carinho, desejem inconscientemente que eu você resolva por
fim a morrer e deixar o mundo aos que o herdaram.
Você se vê se
recriminando pela falta de coragem, pelo apego à segurança na juventude...
Imagina os longos diálogos íntimos entabulados nas suas horas vazias, com seus
arrependimentos.
.
Se um dia preferir
a segurança de uma gaiola moral, conta ao menos perceber que morrerá de uma
forma ou de outra exatamente no dia em que fizer essa escolha.
Você era o fogo,
mas transformou-se em lenha.
Você era a seta,
mas se converteu no arco.
Você desbravava
caminhos, mas tornou-se gado...
Enquanto coloca
a caneca na pia, você planeja e se revolta.
Tenciona
encontrar a saída, pois esse labirinto não é maior do que seu desejo de fugir
dele.
Mesmo tendo de o
percorrer mais mil vezes, mesmo tendo de roer as paredes dessa paz pachorrenta
da qual todo mundo finge se orgulhar.