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quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Cartas de Lugar Nenhum 3

Hoje eu senti saudades.
Seja lá o que isso signifique.
Não é de nada nem ninguém em especial, mas um sentimento de falta que doí, em um lugar em que nada doí e nada flui.
Não tenho efetivamente com o que ocupar o meu tempo, senão o exercício diário de me surpreender com o singular da minha situação. 
E dar voltas na órbita dos meus devaneios e me fazer perguntas retóricas.

De que é que sinto falta afinal?
Noite passada eu comi todo aquele pão da mesa e me decidi a ficar desperto, vendo se algo ou alguém o vinha substituir enquanto eu fingia dormir. Fiquei ali deitado, com olhos fixos na mesa, atento ao menor sinal de qualquer coisa inusitada.

Mas o inusitado tem sido o meu quotidiano nesse lugar e o bruxuleio da vela me hipnotizou tempo o bastante para que eu piscasse e lá estava aquele pão, no mesmo lugar onde um segundo antes meu olhar deu com um prato vazio e tal foi a naturalidade com que dei com ele ali que fiquei e ainda estou em duvidas se realmente o comi inteiro.

Não ouso confiar nos meus sentidos e tampouco nas minhas memórias fragmentadas do nada que sei sobre mim mesmo.

Haverá em algum lugar alguém que chora a minha ausência como nesses dias choro a ausência de mim mesmo?
Se ha, invejo-o até a raiz da alma, pois este chora por alguém cujo rosto e nome reconheceria talvez em uma multidão de rostos e eu não o reconheço mesmo ao espelho.

O que inquieta é a sensação de iminência de qualquer coisa, como se algo se avizinhasse e retrocedesse deixando no ar parado dessa montanha quieta e quente aquela eletricidade que antecede um temporal.

Uma hora se passou desde que escrevi a ultima linha. Falei em temporal e me lembrei de que nunca choveu neste lugar e imediatamente desabou uma chuva torrencial.

Fiquei nostálgico a olhar para as nuvens densar e ouvindo o gotejar rítmico da água em algum lugar atrás da casa. 
Fiz isso o suficiente para saber que eu sempre gostei de chuva. Não foi uma lembrança, mas um sentimento de certeza que me acometeu, junto à ciência de eu também sinto falta de sentir falta.  


quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Cartas de Lugar Nenhum 2

Tenho quase certeza de que morri.
Incomoda não lembrar e não saber se ao menos vivi antes de ter morrido. Ainda que não lembre o tipo de pessoa que eu fui, supondo-se que fui pessoa que supusesse o que quer que fosse, penso que sempre me ha de ter me incomodado a ignorância sobre o que quer que seja.

Aqui estou em topo de montanha muito alta, sem possibilidade alguma de descer, em cabana que nem posso imaginar como foi feita, por quem e como diabos trouxeram para esse cume isolado, primeiro a cabana na qual estou a escrever isso, depois a pessoa que nela habita a indagar como tudo isso se deu.

Em torno dessa cabana ha uma área pequena, um cimo de pedra cinza e quente, onde em pequenos trechos teima em crescer Urzes e outra vegetação rala e pobre.

Não posso dar mais de trinta passos em qualquer direção sem dar com um abismo se estendendo por muitas centenas de metros abaixo à terra e bilhões de quilômetros acima, às estrelas.

Não ha sinal de trilha ou outro meio de acesso pelo qual teria sido possível trazer para este sítio nas alturas todo o aparato que compõe o meu cárcere ou eu próprio. E o pouco terreno é de tal forma acidentado que nem mesmo por meios aéreos se poderia trazer qualquer coisa.

Não por meios que eu possa imaginar.

Há ainda outras coisas surpreendentes; como o fato de aqui ser absolutamente alto, porém a temperatura é agradável, a cama estar sempre limpa, sempre haver pão e queijo a mesa vindos não sei de onde e por mais que eu beba daquela bilha, a água nunca acaba e esta sempre fresca.

Os dias por aqui são extraordinariamente longos e estou quase certo que a primeira noite que surgiu foi em consequência de eu ter notado que o dia estava anormalmente longo.
Conjecturei muita coisa nesse tempo entre a primeira vez que escrevi neste livro em branco e o hiato que surgiu até que peguei este lápis novamente.

Talvez tudo isso seja irreal e seja eu um louco a babar incoerências por detrás das paredes acolchoadas de um asilo qualquer.
Mas como sei o que é loucura e como é que conheço a palavra "asilo"?

E que língua é essa na qual estou escrevendo minhas dúvidas, inclusive sobre a própria e quem ma ensinou?
Se morri de fato, isso tampouco explica esse não-lugar onde estou. A distância vejo cimos de outras montanhas onde é possível haver neste momento outros como eu, atordoados pelo seu não saber.

Ignoro que tipo de pessoa eu fui, mas se estou morto como interpretar este lugar onde estou preso e bem cuidado?
O diabo não seria tão gentil e os anjos não seriam tão cruéis...

Ando a volta dessa cabana como se andasse a volta de mim mesmo e esse limite do abismo cada dia mais me parece convidativo, como se eu devesse dar por ali um salto de fé para transcender minhas dúvidas e a mim mesmo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Cartas de Lugar Nenhum




Eu...
Não sei quanto tempo se passou ou quanto tempo estive a olhar por aquela porta as distâncias infinitas desses horizontes atras de horizontes até que por fim tive consciência de estar consciente e de estar olhando por ela.
Creio que eu pensei ser eu próprio a abertura e o horizonte lilás emoldurado por ela. Se é que eu estava pensando qualquer coisa. 

Quando se está por tempo demais a fazer uma coisa, torna-se a coisa por excelência e eu fui uma porta aberta para as grandes distâncias até que comecei a perceber que percebia.

Mas o fato é que estive a olhar por uma porta, porta esta que está na parede dessa cabana na qual está a mesa, na qual está o livro no qual nesse momento escrevo.

Escrevo a você, embora eu saiba que provavelmente nunca vá ler isso.
Tampouco é carta que eu possa assinar, pois o inusitado dessa situação é que eu não sei quem é você a quem escrevo e tampouco sei quem sou eu, este que te escreve.

Todas as histórias talvez comecem com uma frase redundante, então há de me perdoar se começo do começo, relatando o momento em que deixei de olhar a porta aberta e as montanhas depois dela e me pus a examinar o ambiente a minha volta, surpreso em que houvesse eu a volta do qual havia ambiente a observar.

Como eu disse, estou em uma cabana simples, um cômodo grande com pouca mobília:
Uma cama sobre a qual há colcha e travesseiro, uma mesa tendo por cima uma moringa de barro com água, um tipo de pão de frutas e um queijo qualquer gorduroso e odorífero.

Ha também uma cadeira dura de encosto baixo e janelas de ambos os lados da cabana.
Ela própria é feita de madeira e adobes e embora seja limpa e confortável, tem ar bolorento, como se fosse casa antiga e por muito tempo inabitada.

Não faço ideia de como cheguei aqui e de quem eu sou ou fui.
Mas certamente sou ou fui alguém e certamente cheguei aqui de algum modo e ao pegar esse livro para escrever a carta que nunca enviarei, comecei a me sentir um pouco mais seguro, pois é certo que a medida que o lápis corre por esse papel branco vou desenhando a mim mesmo junto com essa história...

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Poema sem data ou Dente de Leão 2



Ficou no ar feito perfume ou a tensão que precede o atroz...
Após a sua passagem ficou essa certeza
De que ha beleza no mundo,
E sol por sobre aquelas nuvens escuras..

E o desejo pelo fogo e calor que exala desse desejo,
E que ficou no ar e na paisagem depois de sua passagem,
É dessas coisas que não cabem em dicionário..
É dessas respostas para perguntas que nunca foram feitas...

E enquanto isso me percorre as veias em febre e a cabeça em êxtase,
Eu acelero o carro dos meus pensamentos e devaneio estradas infinitas,
Enquanto atravesso ruas de trânsito lento, sentindo felicidade em todos os meus sentidos.

Sussurre enquanto seu corpo treme no meu...
Suspire no ar enquanto minha alma devora cada instante...
Desses, quando desejo que o tempo pare ou exista todo de uma só vez.
Você deixou um pouco de sol, lá nesse paraíso qualquer de onde fugiu?

Eu caio,
Enquanto o ritmo da música diminui e seus cabelos varrem o ar.
Minha pulsação acelera com o mundo e eu sou feliz em câmara lenta..

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Geladas são as noites no País da Morte


 

Ando ha semanas encorujado (como se diz aqui em Minas), por causa do frio.  Mesmo sendo Ateu e descendente na maior parte de africanos e ameríndios, acho que Deus provavelmente vai me reservar uma vaga no inferno nórdico e eu sofrerei entre escandinavos as agruras de um tormento gelado...

Terei, pois, de subornar o Diabo e passar férias nas "quebradas" dele para conseguir relaxar em um confortável ofurô de óleo fervente!

Ahahahahaha!
....

.... 
Inverno é uma época odiosa para mim. Sinto vontade unicamente de dormir, dormir e dormir até que o sol e a chuva voltem para o mundo.

Ontem eu vi pela TV, umas pessoas que saíram de Minas para ir ver um simulacro de neve em uma serra da região Sul.
Cada qual com seu prazer, é claro, mas tem gente que é absurdamente louca!

... 

Gostaria de me mudar para um país (talvez da Ásia) onde fosse quente e chovesse a maior parte do ano e onde inverno fosse coisa que só se vê pela televisão em Especiais de Natal estrangeiro.

 Mas não existe país assim e mesmo se existisse, sei que provavelmente nunca colocaria os pés nele, quanto mais ir morar em uma terra estranha. 

Já me basta ser estrangeiro na minha própria terra e aqui ao menos a língua eu entendo fácil e a comida é suportável. 

Mas estou encolhido, quase desaparecido por entre edredons a noite e  dentro de mim mesmo de dia.
Gostaria de poder tirar férias sazonais e hibernar decentemente. 

Como não posso, emerjo por umas horas para trabalhar e cumprir compromissos.

Deus, como eu odeio o frio! 

Já era um estado e não uma condição da minha natureza, mas no inverno, cada vez mais me sinto e me porto diferentemente de Albert Camus: tão profundo, tão presente em mim e tão alheio do mundo.
  
Coroada de névoas, surge a aurora 

Por detrás das montanhas do oriente; 

Vê-se um resto de sono e de preguiça, 

Nos olhos da fantástica indolente. 



Névoas enchem de um lado e de outro os morros 
Tristes como sinceras sepulturas, 
Essas que têm por simples ornamento 
Puras capelas, lágrimas mais puras. 

A custo rompe o sol; a custo invade 
O espaço todo branco; e a luz brilhante 
Fulge através do espesso nevoeiro, 
Como através de um véu fulge o diamante. 

Machado de Assis




sexta-feira, 20 de abril de 2018

Outra nota sobre a coragem...


Em uma postagem anterior,  falei sobre coragem, como um dom a ser perseguido.

E em outra, não sei se nesse blog ou em espaço perdido nas minhas antigas e perdidas veredas da net eu raciologiquei que coragem não é a ausência de medo. Ausência de medo é burrice, se não for patologia.
Coragem, é ter medo e, não obstante, enfrentá-lo.
É o kamikazi caindo voluntariamente do céu, é o guerreiro sozinho com uma espada se lançando contra um mar de escudos e lanças, é a mãe se jogando sobre o filho para protegê-lo das balas, é o rato acuado brigando como um leão.

É arriscar e talvez morrer por algo maior do que a si próprio.

Talvez seja uma coisa difícil de se fazer, porém, asseguro que é bem mais difícil viver com medo.

Anos atrás, após uma discussão breve, alguém gritou por socorro de madrugada, na rua em frente a minha casa. Me levantei imediatamente e ia sair mas minha ex-esposa me convenceu a não o fazer. Ela argumentou algumas coisas; que era briga de gente ruim, que era obrigação da polícia prestar socorro e que eu tinha esposa e filha e que devia pensar nelas ao invés de me colocar em risco por "gente que não presta".
A briga silenciou na rua e eu me deixei convencer pela minha ex-esposa.
A verdade, bem o sei, é que se eu estivesse resolvido, ela não teria conseguido me deter. Deixei o medo me segurar e me impedir de socorrer alguém. A verdade é que prezei mais a minha segurança do que o fazer o que é correto.
Passados tantos anos, não consigo me recordar deste episódio sem sentir náuseas de desprezo por mim mesmo. E faço questão de contar isso pra que eu nunca me esqueça.

Viver com medo é uma morte lenta, uma tortura silenciosa e uma escolha de covardes que preferem se acomodar quentinhos junto á lareira do que olhar o sol de frente. É coisa de quem quer um universo seguro e ordenado, de quem prefere as sombras projetadas na caverna do que sentir e viver a marcha selvagem da vida.

Viver a verdade das coisas é algo que tenho procurado ha muito tempo.
Penso que já nasci com essa veia moral, de encontrar significado, de olhar atrás do cenário, de tentar saber o que faz a marionete se mexer.
A mentira, a ilusão e a desonestidade são coisas pavorosas, que me reviram o estômago e me gelam o sangue de ódio. E é pior quando tento fazer isso comigo próprio.

Nunca soube de nada mais odioso do que a mentira.
Exceto, talvez, o medo.
Viver com medo ou viver uma vida de mentira é mil vezes pior  do que morrer.

Melhor está o leão morto do que o cão vivo.

O meu maior gesto de coragem foi olhar nos olhos de uma pessoa e lhe falar a verdade, sabendo que isso ia libertá-la e a mim, mas também lhe ia partir o coração e destruir sua zona de conforto.
Colhi as consequências.
Não poderia ser de outra forma.
Mas o alívio que eu senti por não mentir compensou em muito a dor que causei e senti.
Foi a coisa certa a fazer e não posso sequer me orgulhar de o ter feito, porque não é como se eu tivesse escolha.
Mas as pessoas em geral, pensam que têm.
A escolha de mentir.
A escolha de viver o conforto e a segurança.
A escolha do medo.

Mentir é roubar ao outro a liberdade de escolher um caminho a tomar.
Não é uma opção.

Ainda assim, este e outros atos de coragem, paradoxalmente me levam a seguir minha outra veia moral, uma que me move desde criança: O desejo por redenção.

Que pecados tem a purgar um criança?
Talvez o de ter nascido?
Quando aqueles que te trazem ao mundo manifestam, mesmo inconscientemente, o arrependimento por o ter feito, você é um desgraçado se por acaso tem sensibilidade o suficiente para perceber isso.


Deixando de lado minhas fantasias pueris de culpa filial, eu penso muito em redenção.

Não quero ir pra cova carregando essas dores que causei. É um fardo pesado demais.

Viver corajosamente tem um preço, é claro, e eu ainda prefiro ter a consciência atormentada pelos efeitos de uma atitude correta a ter de passar a vida tendo de contar a terceira para justificar a segunda mentira que justificou a primeira que serviu para esconder o fato de que sou um merda!

Ainda não vi um abismo que eu não tenha sentido vontade de me atirar ao fundo.
É a esperança que quando der por fim com o corpo nas pedras, silencie junto com minha respiração, o peso de tantas culpas.

São 16:22 agora...

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Como Nossos Pais


Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi, e tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa

Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar meu irmão
E beijar minha menina na rua
É que se fez o meu braço
O meu lábio e a minha voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantado com uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos  ainda são os mesmos
E as aparências não enganam não
Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu tô por fora
Ou então que eu tô inventando

Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei que quem me deu a idéia
De uma nova consciência e juventude
Está em casa
Guardado por Deus, contando o vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos

Como os nossos pais

(Belchior 1976)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Graal

(...)Você precisa entender um fato (contra o qual, de todo o coração espero que se rebele);

Que há basicamente dois tipos de ser humano sobre a terra: os que nascem para pensar e os que nascem para serem felizes.

Os primeiros, uma diminuta, sublime e desgraçada raça a olhar sonhadora para as estrelas, espécie triste, sem a qual  sequer teríamos descido das árvores.

Os segundos, uma animália que nem chega a ter consciência  de que não tem senão impulsos de  ter impulsos e de manter a cabeça rente ao chão,  a cata de forragem (...)

terça-feira, 20 de março de 2018

O Sagitariano Decrépito





"Que mais há que ocupemos nossas horas, que cair em contradições enquanto esperamos o tecido  fino da vida desfiar?" 
Eu sou um rato. Já percorri essa merda de labirinto trinta vezes e, diabos, eu sei que não há saída, mas vou continuar procurando mesmo assim! E quando por fim me cansar de correr atrás de portas que não existem, vou esburacar essas paredes com os dentes, até que não me restem dentes ou que do limiar do meu desespero surja uma porta qualquer. 

Você desperta com essas palavras reverberando de algum sonho ou lembrança. Como um soldado cujo sono foi mais profundo do que o adequado, salta da cama ouvindo essas palavras, um clarim anunciando mais um dia de guerra.

Anda pala casa como um espectro de madrugada...
De madrugada...Todas as falsas madrugadas em que uma luz difusa e cinza cobre o mundo, você acorda ouvindo palavras, ecos de discursos oníricos ou lembranças, não sabe dizer, e o som de ondas baixas lambendo a areia da praia.

Isso seria confortador, caso o mar não estivesse a várias centenas de quilômetros da sua janela e da sua sanidade (tão cinzenta e incerta como a luz da falsa madrugada e o falso som das ondas que escuta mesmo depois de já estar de pé, na cozinha, se empanturrando de café e solidão).
E você não quer pensar que chegou ao ponto de procurar consolo em devaneios alucinatórios.

Pela janela da cozinha observa sua nova e silenciosa vizinhança.
Talvez a ausência de barulho aqui tenha despertado em sua mente, acostumada a algazarra de sua antiga morada, esse som fantasma de uma praia alhures...

Cioso e agradecido da consideração de seus vizinhos, evita acender as luzes enquanto olha pela janela enorme em meio ao escuro da cozinha. Vê  lá fora, o mar de luzes acesas em uma BH que não dorme. 
Não de todo.

Se recua o olhar por um instante, para a intimidade da sua casa, um fantasma te olha de volta refletido no filme do vidro escuro da janela. Tenta ouvir qualquer som que denuncie vida; criança chorando, buzina de carro, seu coração batendo, um cão latindo, mas tudo que ouve é o zumbido da geladeira e esse som de ondas tão fantasma quanto o homem refletido no vidro segurando a caneca.

Tanta vida lá fora e você aqui, se sentindo esvair como um balão furado.
Agarra-se à caneca com uma força fanática, quase como se o amargo e o calor do café fossem lastro no ar, uma ancora ao inverso, para impedir o inevitável da sua queda.

Sente-se hoje mais perto da morte do que do dia do seu nascimento e é em choque que constata que este é um pensamento que já lhe ocorria aos oito ou nove anos de idade.
Um sentimento de iminência, de ir embora, uma ansiedade que não se configura nem em medo e nem em esperança, semelhante a um ruído branco no fundo da consciência...

Tem poucas expectativas agora.
Você, que era feito essencialmente de fogo e de esperança.
Corre-lhe pelas veias o sentimento de estar inacreditavelmente velho e cansado, como se os fios fracos que te ligam as coisas do mundo estivessem se rompendo um a um

Um dia desses se levantou mesmo antes de saber que havia acordado e antes de ir à cozinha, viu seu corpo ainda deitado e desde então não olha mais para a cama antes de ir pra cozinha ou pra onde quer que seus devaneios o levem de madrugada.

Se seu corpo experimenta cansaço demais para lhe acompanhar, pois que fique. Nunca quis mesmo arrastar consigo presenças relutantes.

Pobre do seu corpo. Anda tão farto da sua companhia...

Fossilizado em cansaço, tão largado quanto o edredom caído ao chão.
Uma casca que você abandona para devanear na janela e no amargo do café que nem mesmo tem certeza estar bebendo ou sonhando que o faz, enquanto fica imaginando onde diabos iriam as pessoas que estavam naquele jato que de madrugada deixava uma trilha reta de nuvem no céu. 

Você sabe que o mundo não inicia e nem termina em si.
Mas você iniciou e terminará em si mesmo.

O que te atormenta é imaginar como subirão as letras finais da droga do filme da sua vida.
Há pensamentos que gostaria de evitar.
Por exemplo, não quer pensar que morrerá tal como nasceu e como viveu: Chorando, com raiva e com medo.

Não quer pensar que será um idoso tão decepcionante para si agora quanto certamente o é para o moleque que foi umas décadas para trás.
Se seu coração encarquilhar dentro desse peito magro, talvez a única paixão que lhe reste no futuro, que seja capaz de o mover, seja examinar o paradoxo de ter ficado velho sem nunca ter sido jovem.

Voce pensa se quer mesmo viver para colecionar tanto arrependimento quanto cabelo branco.
Se por um lado não curou o câncer, tampouco jogou lixo nuclear em um parque, não plantou uma floresta e nem poluiu um rio e é triste se imaginar uma irrelevância tanto para o bem quanto para o mal no ordenamento final das coisas.

Por mais intenso que tenha sido no sentir, pondera que amou em conta gotas e foi igualmente frugal em seu ódio...
Não abraçou nenhuma causa que não tenha abandonado depois, não defendeu nenhum ponto de vista que não tenha renegado.

Talvez apenas se torne mais um velhote com frio, lamuriento e nostálgico.
Ou pior! Talvez se torne desgraçadamente conformado e feliz!

Imagina-se andando por uma casa esmolando atenção e cuidados de netos que te ignoram solenemente e uma parentalha barulhenta, desconfiado intimamente de que eles, a despeito de todo o carinho, desejem inconscientemente que eu você resolva por fim a morrer e deixar o mundo aos que o herdaram.

Você se vê se recriminando pela falta de coragem, pelo apego à segurança na juventude... Imagina os longos diálogos íntimos entabulados nas suas horas vazias, com seus arrependimentos.
. 
Se um dia preferir a segurança de uma gaiola moral, conta ao menos perceber que morrerá de uma forma ou de outra exatamente no dia em que fizer essa escolha.

Você era o fogo, mas transformou-se em lenha.
Você era a seta, mas se converteu no arco.
Você desbravava caminhos, mas tornou-se gado...

Enquanto coloca a caneca na pia, você planeja e se revolta.

Tenciona encontrar a saída, pois esse labirinto não é maior do que seu desejo de fugir dele.

Mesmo tendo de o percorrer mais mil vezes, mesmo tendo de roer as paredes dessa paz pachorrenta da qual todo mundo finge se orgulhar.

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