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quarta-feira, 18 de maio de 2016

1978, Elis Regina e uma mulher em manhãs de sábado



O ano era 1978.

Eu acho. Não se deve confiar demais na memória de alguém que procura memórias suas aos cinco anos de idade. Há gente que, com efeito, se recorda de lembranças de idade mais tenra ainda, prodígios capazes de voltar no tempo até seus dois ou três anos ou, caso não haja exagero, até mesmo meses de idade ou memórias intrauterinas.

Vai saber...
Lamento informar que não me encontro no rol de tais fenômenos e até o que comi no almoço me é tão indistinto quanto a camisa que usei em 15 de abril de 1993 ou, sei lá, minha adolescência que passou quase como um sopro de sonho. Daí eu ter de advertir que muito provavelmente, minhas memorias de 1978 são muito mais sensoriais (nisso eu posso me gabar de ter uma habilidade notável) do que de fatos concretos.

Eu tinha, pois, cinco anos e já era uma criança bem estranha, para os padrões da minha comunidade.

Muito grave, quase nunca ria e nunca chorava e se o fizesse, era em silêncio, no máximo um murmúrio de protesto sentido. Há que se pensar que eu esteja me vangloriando.... Ledo engano! Eu era uma criança “odiosa”. Os adultos me evitavam. As outras crianças também.  Era quieto demais. Silencioso demais. Adultos gostam de crianças barulhentas e dependentes, que lhes acreditem em todas as contradições e mentiras e que os façam sentir-se necessários e as crianças igualmente gostam de outras que lhes desafiem em jogos ou lhes apoiem as gatagens.

Eu era uma coisa que observava, indagava e aprendia. Por isso enquanto a matilha de irmãos e primos gritava lá fora atrás de cachorros, pipas e encrencas, eu me sentava e olhava pro céu, pras nuvens e pra dentro do meu pequeno e curioso eu.

A exceção, o que me arrancava de dentro da minha introspecção era o meu espetáculo favorito. Minha mãe.

Deus inexistente, como eu amava aquela mulher! 
Ela era linda, ora sofrida, ora alegre e vibrante. 
Aos fins de semana, depois de se matar a semana inteira para alimentar a ninhada, ela se matava para limpar a sujeira que a mesma ninhada fazia em suas ausências da semana.
Ela lavava roupas, limpava a casa, fazia a comida e limpava o terreiro, num ritual que lhe comia o dia todo.

Raramente eu a via, durante o dia, se sentar para comer ou para passar óleo nas pernas e cuidar do cabelo, coisa que ela só fazia durante a noite quando a ninhada já estava dormindo. Minha mãe primeiro cuidava do mundo. Depois cuidava de si. Depois disso, ela se sentava próximo a lamparina (não tinha luz elétrica em alguns bairros de BH nessa época) e se dedicava ao vicio que me legou: ler livros.

O menino estranho e a mulher sozinha a cuidar de seis filhos...

1978...

Minha mãe sempre canta quando está triste. Minha mãe está sempre cantando.

Em 1978 ela estava recém separada do meu pai. História comum em bairro comum de uma cidade comum de um mundo comum: Homem “abandona” mulher com filhos e cai no mundo. Lega a mulher o cuidado com os filhos e vai viver a vida com outra. Minha mãe amava aquele homem inconstante. Até onde eu sei, ele fazia um sucesso inacreditável com a mulherada. Charmoso, bonitão e absolutamente canalha, atributos que bem poderia ter me deixado de herança, já que não me deixou pecúnia.

Oh, aos cinco anos de idade eu amei pela primeira vez e pela primeira vez eu vi como era tolo o coração de uma mulher apaixonada. Minha mãe havia sido traída mais de uma vez. E meu pai ia e voltava uma história pra lá de clichê e não vou aborrecer ninguém com esses detalhes porque é basicamente a história de milhares, senão milhões de famílias...

Minha mãe cantava. Tinha uma radiola antiga a pilhas, onde ela ouvia Benito di Paula, Valdir de Azevedo e Elis Regina.

Elis. Se minha mãe foi meu primeiro amor, Elis foi o segundo.

Naquelas manhãs de sábado em que o sol entrava em casa pelas frestas do telhado desenhando moedas de ouro nas paredes e caindo em raios de poeira levantada pela vassoura da minha mãe, eu a ouvia cantar lá fora.

Na radiola, Elis cantava com minha mãe.
Eu já ouvi todas as músicas de Elis. Ouvi várias vezes e nunca consegui ao certo saber qual era aquela que minha mãe duetava com Elis. Talvez seja porque minha memória de cinco anos é emocional e sensorial. Eu ainda não tinha um arcabouço linguístico elaborado o bastante para saber sobre o que cantavam aquelas duas mulheres lindas. Eu apenas intuía. Eu hoje sou ateu, mas penso que aquelas manhãs de sábado eram momentos religiosos. Havia algo de muito místico naquilo. 

Eu saltava da cama irritado por ter dormido demais e ia lá pra fora, pro sol, pra poeira, pra Elis e pra minha mãe.
Elis cantava como um anjo e como um demônio, como uma amante, como uma assassina...!

Não sei qual era, mas minha mãe repetia tanto aquela música que não sei como o disco de vinil não gastava. E na voz de Elis, embora eu não soubesse e nem saiba a letra, eu ouvia a alegria e a dor, Elis amava naquela música e também odiava. Ela parecia implorar e amaldiçoar. Elis gritava sua angustia e seu deleite de um modo absolutamente mágico e parecia protestar e desafiar seja lá qual o destino lhe arrebatara a pessoa amada.

Era prata, cristal e fogo no ar em forma de música. Eu não entendia como meus irmãos ou qualquer pessoa podia fazer ou olhar ou ouvir qualquer coisa que não fosse aquilo. Era minha mãe, ainda lamentando a perda do “amor de sua vida”, chorando junto a Elis Regina em manhãs de sábado de 1978. Eu não sabia bem como reagir a beleza triste daquilo. Algumas vezes eu desejava poder fazer algo, por que em idade edípica, eu também lamentava do meu pai uma ausência qualquer. Venci meu inimigo pelo coração da mulher que eu amava. 

O que eu não sabia, era que eu amava o meu inimigo vencido e que ao expulsá-lo, fiquei com a mulher, mas o coração dela se foi com ele. Saudades do meu pai morto ainda em vida e de minha mãe, morta como mulher... Coisas que o divã revela...

Eu nada podia fazer, mas ao longo dos anos, sempre que minha mãe estava muito triste, eu permanecia calado ao lado dela, numa solidariedade muda, porque a mim parecia em minha fantasia de criança, que ficando perto eu poderia pegar um pouco daquilo que lhe pesava ao coração, absorver parte da tristeza dela para que ela risse mais, porque minha mãe chorando com Elis Regina era uma primavera, mas rindo, ela era as quatro estações e mais algumas.

Foi uma verdadeira lástima que minha mãe, assim como muita gente ao longo do meu caminhar, não compreendesse bem meu modo sutil de amar e de viver. Nunca entendeu o filho calado e profundo e embora ela tentasse muito, nunca conseguiu gostar dele ou o amar como pessoa.

Não me levem a mal (levem-me para Pasárgada!). Eu lhes asseguro que amor de mãe é coisa inútil para mim. Segundo dizem, se uma mãe tiver doze filhos, 11 psicopatas sádicos e um virtuoso, há de amar igualmente aos 12. Então qual o mérito do filho virtuoso no que tange ao amor de sua mãe?

Esse amor ideal de mãe, que tudo suporta, que tudo aceita e blá blá blá.... Isso nunca me interessou de modo que embora ela tenha sido excelente e ido além de suas forças ao cuidar de mim, não chego a lamentar que ela não me tenha amado como um filho. Eu já vi o que os filhos fazem as mães e como o amor por eles é pesado para elas. Todas essas besteiras que li no dia das mães, sobre esse ideário de amor quase transcendental, mãe que ama incondicionalmente, que tudo suporta, como se fosse realmente um martírio qualquer abrir o útero para uma criança, sofrer no parísio; ideário que talvez venha do mito de Maria mãe de Jesus, isso tudo me deixa nauseado, por que parece negar a uma mulher, uma vez sendo mãe, a humanidade própria.

Mães não podem odiar, não podem se permitir uma canalhice, mães não tem orgasmos (supostamente a concepção de filhos deve ser “pura”), momentos de fraqueza ou força, mães estão condenadas à santidade em vida e não são absolutamente, mulheres. 
Pobres mães...

Ah, eu amava aquela mulher que chorava o amor perdido enquanto colocava lençóis azulados de anil na grama para quarar ao som absolutamente mágico da voz incrível de Elis Regina. Amava a força esmagadora dela ao enfrentar o mundo, ao levantar de madrugada no escuro para arrancar sozinha do mundo o com que alimentar os filhos; suportando bravamente enquanto o ser mãe ia lentamente minando o ser mulher dela.

Muita chuva e vento e verões transcorreram desde 1978.


Morreu Elis, morreu meu pai, morreu a mulher que cantava com Elis e chorava pelo meu pai. 

Ficou a mãe, que me olha com olhos gentis, vasculha no fundo da alma algum amor que possa dar ao filho estranho tão “indiferente” e diferente dos outros filhos e pergunta como vou indo, nas raras vezes em que nos vemos. Abraço-lhe o corpo ossudo, os ombros cansados e sinto raiva de mim mesmo por ser seu filho e assim como os outros filhos, ter arrancado dela tanto que não posso devolver. 

Quase como se eu tivesse entrado no Louvre e, extasiado de amor, tivesse arruinado a Mona Lisa...

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Em Três Tempos




(Tarde)
Letárgico, olhava para dentro em queda livre, sentindo a vertigem própria de quem se abisma em si mesmo.

Sentia e ponderava a impertinência que é o sentir.
Me sentia impertinente...

E divagava em meu divagar, me concentrando em me concentrar, extraordinariamente perdido de mim, acendendo cigarros esquecido de que não fumo...

E olhava para a janela fechada tentado me recordar do que era o ânimo para abrir a janela.
Tentando me lembrar do que é lembrar.
E enquanto olhava, entrou pela janela o sol e uma bola
Estilhaçando vidro e letargia.

Pela janela quebrada por onde entrou sol e bola eu olhava a me olhar uma menina com o sol nos olhos e nos cabelos.
O mesmo sol que me entrou pela janela junto a bola.

(Noite)

Experimento estar desperto depois de semanas de sonambulismo insone,
Estico os nervos adormecidos da literatura
E me flexiono atordoado em linhas novamente...
A bola ainda está no chão com o vidro quebrado e o sol arde agora em algum lugar da china e de mim.

(Manhã)

E o que lhe posso dar, criança antiga como as histórias que se contam às crianças?
Há alguma novidade que eu possa contar que já não esteja embolorada de antiguidade?
Há algum presente que eu lhe possa legar no futuro que não esteja enraizado ao passado?
Há perguntas que lhe possa fazer cujas respostas não tenha adivinhado em seus jogos solitários de advinhas?

Eu lhe poderia amar, mas que é o amor que eu conheça, que não seja essa fome ardente que consome até as cinzas e continua a consumir mesmo quando já não há o que consumir?

Tenho um Everest  de motivos, um labirinto de livros não escritos na memória com todas as histórias ainda por contar, mas que esquecemos.

Sei por instinto, como o sabem as feras, todas as alegrias e agruras do mundo na última hora.
Ainda tenho uma garrafa daquele vinho transformado, que antes fora água, e que antes fora chuva, e que antes fora a lágrima de alguém que bebia vinho sozinho...

Cigarros meio fumados, em meios cinzeiros nas cinzas de uma meia manhã cinzenta...
Uma vida meio vivida...

Enquanto recolho do chão os cacos de vidro quebrados e fragmentos da minha consciência adormecida, corto os dedos, conto as horas e me movo em câmara lenta enquanto tento decifrar o mistério que te faz tão jovem e tão antiga.

Sobe a fumaça evolando do meu cérebro em ebulição, esses meus cabelos brancos subitamente pueris diante do seu corpo pós adolescido...

Em dó menor eu desafinei minhas angustias numa sinfonia muda de letras por dias infinitos.
Houve alguma vez dentro ou fora de um poema, palavra que descrevesse o assombro?
Se houvesse, haveria o assombro e haveriam palavras, mas não poesia...
Não haveria você e não haveria eu a escrever sobre escrever sobre você.

Eu faço um poema que rasteja por debaixo dessa prosa e saio do meu transe e entro no seu.
Faço cópulas com as palavras, tentando rimar o que vejo quando olho pra você, com o que eu deveria estar vendo.

E te destino essas linhas e entrelinhas e o que há entre elas e que não escrevi.
E amanhã devolverei a bola, mas acho que reterei o seu sol...



Para Lili, pelo resgate...









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