É uma manhã como
todas as outras.
Uma primeira
manhã como todas as ultimas. O esquisito, para início de conversa, é que escovo
os dentes de maneira metódica, todas as noites antes de dormir. Depois
enxaguante com o desenho de um cara queixudo no rótulo e mais um pouco de água.
Ainda assim, acordo com a boca amarga, como se tivesse bebido rum ou absinto e
como se tivesse passado a noite em um festim nojento na lixeira.
Isso pra não
falar do corpo doendo, a cabeça latejando e a sensação de que elefantes me
usaram como pista de dança por mais uma noite e que fui sparring em algum sonho
perdido do Muhamad Ali...
Antes de ir
tirar a sensação de esgoto da boca e desenrijecer a máquina velha que é meu
corpo, tenho de me atualizar.
Me situar de
novo no mundo concreto e separar as sobras de sonhos que me enxameia a cabeça
como moscas em torno da lixeira que sinto no estômago; terminar diálogos que
tive nesses sonhos, experimentar partes do meu corpo para ter certeza de que
não vão se liquefazer ou coisa parecida e por fim decidir de vez se já acordei
mesmo ou se ainda estou vivendo uma daquelas outras mil e doze vidas, mais terríveis,
mais vívidas, mais sensíveis e mais preferíveis a essa em que acordo com lixo
no estômago e dores nos ossos.
Esse processo
não costuma demorar mais do que uns poucos minutos, mas nos últimos tempos
tenha percebido com o que me resta de senso crítico nesses momentos no limiar,
que tenho me demorado cada vez mais entre sonho e realidade.
E não chego a ter
certeza do quê é o quê.
Algumas vezes
isso me ocorre ao longo do dia, como num sonho lúcido invertido.
Então o
despertador berra uma irritante música que vivo jurando que vou mudar sem o
fazer e por fim decido que sou Eu. Espanto relutante as sobras de sonho a
contragosto e reitero escovação, enxaguante e mais água, apenas para minutos
depois sujar novamente dentes e espírito com café e as notícias do mundo nos
jornais da manhã.
Está escuro lá
fora e tento me recordar se na verdade já não é noite e eu tenha dormido de dia e por
algum motivo não me tenha lembrado.
Não.
É chuva.
O céu parece
comigo esta manhã: Negro, ameaçador, de mau humor e em vias de desabar.
“Bem-vindo ao clube, cara!”.
Se eu tivesse
bom senso não estaria zombando do céu em manhã de tempestade. Não me lembro o
que é bom senso.
Também não me
lembro de ter ligado a TV ou mesmo se deixei ligada quando dormi. Mas ela zumbe
uma musica qualquer que por motivo qualquer me chama a atenção.
“E a estrada
fica difícil, não sei o porquê...
A estrada é
longa, nós seguimos adiante
Tente se
divertir nesse meio tempo”
Garota com cara
anglo-saxâ e nome latino.
Bonita. O cara
abraçado com ela no vídeo também. Ao fundo tem uma bandeira americana tremulando
e a música não é de todo ruim. Mas o cenário é clichê demais.
Pelo modo como
se abraçam, percebo que definitivamente não sou um tipo romântico ou tenho uma
percepção um tanto torta do que é o amor, se é que a música fala realmente
disso.
Azar!
Tenho uma
percepção torta sobre quase tudo, inclusive sobre o que é percepção...
A menina no
vídeo parece estar nos seus melhores anos. Mas já tem tempo que não vejo um
sujeito com uma aparência mais junkie
life! Se esse vídeo tiver mais de
um ano, duvido que esse garoto ainda esteja vivo.
Mas é maldade
minha e talvez uma pontada de inveja, por eu ser tão saudável, por não fumar ou
ter tatuagens ou não ser capaz de arruinar o coração de alguém, como a letra da
canção dá a entender que o garoto de aparência doentia fez ou faz.
Desligo a TV e
olho pela janela. O céu está mais escuro. Embora já seja oito da manhã, as
luzes dos postes ainda estão ligadas lançando o amarelo do mercúrio em desafio
ao negror do céu.
Tem gente
passando apressada na calçada, como se chuva fosse ácido. E nem está chovendo
ainda. Sinto impulsos de gritar: É só água, caramba!
Mas quem disse
que consigo atender a impulsos?
São 8:32
agora...
Acho que eu
devia estar a caminho do trabalho ou coisa assim e só depois de tomar mais duas
ou três xícaras de café me decido por fim de que é domingo e não tenho que
sair.
É onde é que
essa gente vai apressada as oito da manhã de domingo?
Queria que todo
dia fosse domingo, menos as quartas, que é dia sessão de filmes estrangeiros
num charmoso cinema decadente ali pelos lados do Floresta.
Espera aí...
O cinema fechou
há anos. Virou uma Igreja eu acho.
E é para a
igreja lá da esquina que essa gente vai, com certeza.
Desliguei a TV
cedo demais.
Aos poucos me
recordo de que no dia anterior estava defenestrando com alguma alegria todos os
textos sobre psicologia que fui obrigado a ler nos últimos anos e em meio a
estes papeis dei com uns versinhos rimados que forjei há uns vinte anos.
Havia me
esquecido de que os havia escrito e bem poderia ter continuado neste
esquecimento.
Que coisa tola e
doce e idealista! E este era eu nestes versos.
Verdade seja
dita, tenho preguiça e um desdém enorme pelos versos que já escrevi em qualquer
época e que em uma vaidade entorpecida chamei de “poesia”.
É como quando se
é criança e pega-se um monte de remédios dos pais, temperos e mais qualquer
outra substância a mão e mistura-se, imaginando estar criando uma fórmula mágica.
Escrevo uma
coisa, acho-a maravilhosa e passo um curto tempo gozando a irreal e fugidia
sensação de que sei escrever.
Depois renovo a
minha convicção de que sou um tolo e defenestro meus escritos, com a mesma facilidade com
que gostaria de defenestrar a mim mesmo de mim.
Mas estes versos
em particular me irritam demasiado.
O caso é que
eles representam um Eu que já desapareceu de mim sem deixar saudades e sentir
na sintaxe deles o absurdo da minha (quero crer) antiga ingenuidade, deixa-me
um tanto encabulado, especialmente por me recordar de que àquela época, eu
teria defendido com unhas e dentes e um fervor apaixonado essas ideias de que
hoje me envergonho.
E eu era realmente
assim?
Pobre e tolo
Luiz...
Ocorreu-me um
dos meus trechos favoritos de Waking Life e fiz as contas: Vinte anos... Troquei
todas as células do meu corpo neste tempo e já não há mais nem um resquício
daquele garoto em mim.
Isso porém não
me consola nem um pouco e sobra-me a certeza de que, em geral, o
constrangimento que se sente quando topamos com algum vestígio de um Eu nosso
mais jovem é na verdade uma disfarçada culpa por termos decepcionado os anseios
daquela criança que fomos um dia.
É quase como se
disséssemos: “Desculpe garoto(a), mas eu fiz merda com todas as suas esperanças”.
Culpa sua,
menino!
Quem mandou ter
tão altas expectativas em relação a si e ao mundo?
Finalmente
começa a chover e uma garota passa na calçada.
Diferente dos
demais, ela não tem pressa e vai na direção contrária. Fuma e eu sinto inveja
dela e sentir inveja duas vezes numa só manhã me deixa ainda mais irritado.
Nas costas nuas
ela levava a tatuagem de uma fênix, a mais mal feita que já vi e por isso a
achei linda. Que direito essa menina tem de passar diante do meu mau humor como
um raio de sol naquelas nuvens escuras? (penso nisso e intimamente digo: "Mais versos dos quais me envergonhar amanhâ...")
A beleza das
mulheres é um tormento e um tormento a mais quando emoldurada em almas rebeldes
como aquela.
Deus, tem dias
que ser um homem é um saco!
Também é um saco
controlar emoções o tempo todo então enquanto rasgo meus antigos e rejeitados versos
dou livre rédea a minha inveja.
Sinto inveja do
menino que fui e do cigarro daquela menina, da igreja para onde as pessoas iam
apressadas em busca de salvação, do mundo de onde essa garota provavelmente
vinha com uma nova cota de pecados e do céu, que depois de muito ameaçar, desaba pesado sobre o mundo.