O ano era 1978.
Eu acho. Não se deve confiar demais na memória de alguém que
procura memórias suas aos cinco anos de idade. Há gente que, com efeito, se
recorda de lembranças de idade mais tenra ainda, prodígios capazes de voltar no
tempo até seus dois ou três anos ou, caso não haja exagero, até mesmo meses de
idade ou memórias intrauterinas.
Vai saber...
Lamento informar que não me encontro no rol de tais fenômenos
e até o que comi no almoço me é tão indistinto quanto a camisa que usei em 15
de abril de 1993 ou, sei lá, minha adolescência que passou quase como um sopro
de sonho. Daí eu ter de advertir que muito provavelmente, minhas memorias de
1978 são muito mais sensoriais (nisso eu posso me gabar de ter uma habilidade
notável) do que de fatos concretos.
Eu tinha, pois, cinco anos e já era uma criança bem
estranha, para os padrões da minha comunidade.
Muito grave, quase nunca ria e nunca chorava e se o fizesse,
era em silêncio, no máximo um murmúrio de protesto sentido. Há que se pensar que
eu esteja me vangloriando.... Ledo engano! Eu era uma criança “odiosa”. Os
adultos me evitavam. As outras crianças também. Era quieto demais. Silencioso demais. Adultos
gostam de crianças barulhentas e dependentes, que lhes acreditem em todas as
contradições e mentiras e que os façam sentir-se necessários e as crianças igualmente gostam de outras que lhes
desafiem em jogos ou lhes apoiem as gatagens.
Eu era uma coisa que observava, indagava e aprendia. Por
isso enquanto a matilha de irmãos e primos gritava lá fora atrás de cachorros,
pipas e encrencas, eu me sentava e olhava pro céu, pras nuvens e pra dentro do
meu pequeno e curioso eu.
A exceção, o que me arrancava de dentro da minha
introspecção era o meu espetáculo favorito. Minha mãe.
Deus inexistente, como eu amava aquela mulher!
Ela era linda, ora sofrida, ora alegre e vibrante.
Aos fins de
semana, depois de se matar a semana inteira para alimentar a ninhada, ela se
matava para limpar a sujeira que a mesma ninhada fazia em suas ausências da semana.
Ela lavava roupas, limpava a casa, fazia a comida e limpava
o terreiro, num ritual que lhe comia o dia todo.
Raramente eu a via, durante o dia, se sentar para comer ou
para passar óleo nas pernas e cuidar do cabelo, coisa que ela só fazia durante
a noite quando a ninhada já estava dormindo. Minha mãe primeiro cuidava do
mundo. Depois cuidava de si. Depois disso, ela se sentava próximo a lamparina (não
tinha luz elétrica em alguns bairros de BH nessa época) e se dedicava ao vicio
que me legou: ler livros.
O menino estranho e a mulher sozinha a cuidar de seis
filhos...
1978...
Minha mãe sempre canta quando está triste. Minha mãe está
sempre cantando.
Em 1978 ela estava recém separada do meu pai. História comum
em bairro comum de uma cidade comum de um mundo comum: Homem “abandona” mulher
com filhos e cai no mundo. Lega a mulher o cuidado com os filhos e vai viver a
vida com outra. Minha mãe amava aquele homem inconstante. Até onde eu sei, ele
fazia um sucesso inacreditável com a mulherada. Charmoso, bonitão e
absolutamente canalha, atributos que bem poderia ter me deixado de herança, já
que não me deixou pecúnia.
Oh, aos cinco anos de idade eu amei pela primeira vez e pela
primeira vez eu vi como era tolo o coração de uma mulher apaixonada. Minha mãe
havia sido traída mais de uma vez. E meu pai ia e voltava uma história pra lá
de clichê e não vou aborrecer ninguém com esses detalhes porque é basicamente a
história de milhares, senão milhões de famílias...
Minha mãe cantava. Tinha uma radiola antiga a pilhas, onde
ela ouvia Benito di Paula, Valdir de Azevedo e Elis Regina.
Elis. Se minha mãe foi meu primeiro amor, Elis foi o
segundo.
Naquelas manhãs de sábado em que o sol entrava em casa pelas
frestas do telhado desenhando moedas de ouro nas paredes e caindo em raios de
poeira levantada pela vassoura da minha mãe, eu a ouvia cantar lá fora.
Na radiola, Elis cantava com minha mãe.
Eu já ouvi todas as músicas de Elis. Ouvi várias vezes e
nunca consegui ao certo saber qual era aquela que minha mãe duetava com Elis.
Talvez seja porque minha memória de cinco anos é emocional e sensorial. Eu
ainda não tinha um arcabouço linguístico elaborado o bastante para saber sobre
o que cantavam aquelas duas mulheres lindas. Eu apenas intuía. Eu hoje sou ateu, mas penso que
aquelas manhãs de sábado eram momentos religiosos. Havia algo de muito místico
naquilo.
Eu saltava da cama irritado por ter dormido demais e ia lá pra fora,
pro sol, pra poeira, pra Elis e pra minha mãe.
Elis cantava como um anjo e como um demônio, como uma amante, como uma assassina...!
Não sei qual era,
mas minha mãe repetia tanto aquela música que não sei como o disco de vinil não
gastava. E na voz de Elis, embora eu não soubesse e nem saiba a letra, eu ouvia
a alegria e a dor, Elis amava naquela música e também odiava. Ela parecia
implorar e amaldiçoar. Elis gritava sua angustia e seu deleite de um modo
absolutamente mágico e parecia protestar e desafiar seja lá qual o destino lhe
arrebatara a pessoa amada.
Era prata, cristal e fogo no ar em forma de música. Eu não
entendia como meus irmãos ou qualquer pessoa podia fazer ou olhar ou ouvir
qualquer coisa que não fosse aquilo. Era minha mãe, ainda lamentando a perda do
“amor de sua vida”, chorando junto a Elis Regina em manhãs de sábado de 1978.
Eu não sabia bem como reagir a beleza triste daquilo. Algumas vezes eu desejava
poder fazer algo, por que em idade edípica, eu também lamentava do meu pai uma
ausência qualquer. Venci meu inimigo pelo coração da mulher que eu amava.
O que
eu não sabia, era que eu amava o meu inimigo vencido e que ao expulsá-lo, fiquei
com a mulher, mas o coração dela se foi com ele. Saudades do meu pai morto ainda em vida e de minha mãe, morta como mulher... Coisas que o divã revela...
Eu nada podia fazer, mas ao longo dos anos, sempre que minha
mãe estava muito triste, eu permanecia calado ao lado dela, numa solidariedade
muda, porque a mim parecia em minha fantasia de criança, que ficando perto eu
poderia pegar um pouco daquilo que lhe pesava ao coração, absorver parte da tristeza
dela para que ela risse mais, porque minha mãe chorando com Elis Regina era uma
primavera, mas rindo, ela era as quatro estações e mais algumas.
Foi uma verdadeira lástima que minha mãe, assim como muita
gente ao longo do meu caminhar, não compreendesse bem meu modo sutil de amar e
de viver. Nunca entendeu o filho calado e profundo e embora ela tentasse muito,
nunca conseguiu gostar dele ou o amar como pessoa.
Não me levem a mal (levem-me para Pasárgada!). Eu lhes asseguro que amor de mãe é coisa inútil para mim. Segundo
dizem, se uma mãe tiver doze filhos, 11 psicopatas sádicos e um virtuoso, há de
amar igualmente aos 12. Então qual o mérito do filho virtuoso no que tange ao
amor de sua mãe?
Esse amor ideal de mãe, que tudo suporta, que tudo aceita e
blá blá blá.... Isso nunca me interessou de modo que embora ela tenha sido
excelente e ido além de suas forças ao cuidar de mim, não chego a lamentar que
ela não me tenha amado como um filho. Eu já vi o que os filhos fazem as mães e
como o amor por eles é pesado para elas. Todas essas besteiras que li no dia
das mães, sobre esse ideário de amor quase transcendental, mãe que ama
incondicionalmente, que tudo suporta, como se fosse realmente um martírio
qualquer abrir o útero para uma criança, sofrer no parísio; ideário que talvez venha do mito de
Maria mãe de Jesus, isso tudo me deixa nauseado, por que parece negar a uma
mulher, uma vez sendo mãe, a humanidade própria.
Mães não podem odiar, não podem se permitir uma canalhice,
mães não tem orgasmos (supostamente a concepção de filhos deve ser “pura”), momentos
de fraqueza ou força, mães estão condenadas à santidade em vida e não são
absolutamente, mulheres.
Pobres mães...
Ah, eu amava aquela mulher que chorava o amor perdido
enquanto colocava lençóis azulados de anil na grama para quarar ao som
absolutamente mágico da voz incrível de Elis Regina. Amava a força esmagadora dela ao
enfrentar o mundo, ao levantar de madrugada no escuro para arrancar sozinha do
mundo o com que alimentar os filhos; suportando bravamente enquanto o ser mãe ia
lentamente minando o ser mulher dela.
Muita chuva e vento e verões transcorreram desde 1978.
Morreu Elis, morreu meu pai, morreu a mulher que cantava com
Elis e chorava pelo meu pai.
Ficou a mãe, que me olha com olhos gentis, vasculha
no fundo da alma algum amor que possa dar ao filho estranho tão “indiferente” e
diferente dos outros filhos e pergunta como vou indo, nas raras vezes em que
nos vemos. Abraço-lhe o corpo ossudo, os ombros cansados e sinto raiva de mim
mesmo por ser seu filho e assim como os outros filhos, ter arrancado dela tanto
que não posso devolver.
Quase como se eu tivesse entrado no Louvre e, extasiado
de amor, tivesse arruinado a Mona Lisa...
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